Uma utopia da certeza, Zuboff

Esta é uma tradução do capítulo de mesmo nome do livro Surveillance Capitalism, de Shoshana Zuboff.


UMA UTOPIA DA CERTEZA

Assim, a partir dos anos, seus dons foram regados:

Cada qual com aquele que precisava para sobreviver;

A abelha levou a política que convém a uma colmeia,

A truta com barbatana de truta, o pêssego moldado em pêssego,

E foram bem-sucedidos em seu primeiro esforço.

W. H. Auden

Sonetos da China, I

I. A sociedade como o Outro

Embora não tenha mencionado, o visionário da computação ubíqua, Mark Weiser, previu a imensidão do poder instrumentário como um projeto social totalizante. Ele o fez de uma forma que sugere tanto sua total falta de precedentes quanto o perigo de confundi-lo com o que já havia acontecido antes: “centenas de computadores em cada sala, todos capazes de perceber as pessoas próximas, ligados por redes de alta velocidade, têm o potencial de fazer com que o totalitarismo pareça até agora a mais pura anarquia”.1 Na verdade, todos esses computadores não são o meio para um hiper-totalitarismo digital. Eles são, como acredito que Weiser percebeu, a base de um poder sem precedentes que pode remodelar a sociedade de formas também nunca vistas. Se o poder instrumentário* consegue fazer o totalitarismo parecer uma anarquia, então o que podemos esperar que faça conosco?

Há sete décadas, a utopia comportamental proto- instrumentária de Skinner, Walden Two, foi recebida com repulsa. Hoje em dia, o mundo real é a inspiração para a retórica do capitalismo de vigilância, à medida que os seus líderes promovem as ferramentas e visões que trarão as ideias do velho professor à vida… às nossas vidas. Os processos de normalização e habituação já começaram. Vimos anteriormente que a busca do capitalismo de vigilância por certeza – o imperativo da previsão – exige uma aproximação contínua à informação total como a condição ideal para a inteligência de máquina. No caminho da totalidade, os capitalistas de vigilância ampliaram seu escopo do mundo virtual para o mundo real. O negócio baseado no real renderiza todas as pessoas, coisas e processos como objetos computacionais em uma fila interminável de equivalência sem igualdade. Agora, à medida que os negócios baseados na realidade se intensificam, a busca da totalidade leva necessariamente à anexação da “sociedade”, das “relações sociais” e dos principais processos sociais como um novo terreno para renderização, cálculo, modificação e previsão.

A ubiquidade do Grande Outro [Big Other] é reverenciada como inevitável, mas não acaba aí. O objetivo nessa nova fase é a visibilidade, coordenação, confluência, controle abrangentes e a harmonização dos processos sociais na busca de escala, escopo e ação. Embora o instrumentarianismo e o totalitarismo sejam espécies distintas, cada um deles anseia pela totalidade, embora de formas profundamente diferentes. O totalitarismo busca a totalidade como uma condição política e depende da violência para consegui-lo. O instrumentarianismo busca a totalidade como condição de domínio do mercado e depende do controle sobre a divisão do aprendizado na sociedade, possibilitado e imposto pelo Outro Grande, para abrir seu caminho. O resultado é a aplicação do poder instrumentário à otimização da sociedade em prol dos objetivos do mercado: uma utopia da certeza.

Embora ressoem em muitos aspectos com a visão social instrumentária da elite política da China, os capitalistas de vigilância têm objetivos distintos. Em sua visão, a sociedade instrumentária é uma oportunidade de mercado. Quaisquer normas e valores que eles impõem são projetados para promover o cumprimento exato dos objetivos do mercado. Como a experiência humana, a sociedade está subordinada à dinâmica do mercado e renasce como métrica comportamental computacional objetificada disponível para as economias do capitalismo de vigilância de escala, escopo e ação na busca dos suprimentos mais lucrativos de mais-valia comportamental. A fim de alcançar esses objetivos, os capitalistas de vigilância têm conjurado uma visão arrepiante. Eles pretendem formar uma nova sociedade que emule o aprendizado de máquina da mesma forma que a sociedade industrial foi modelada nas disciplinas e métodos de produção de fábrica. Em sua visão, o poder instrumentário substitui a confiança social, o Grande Outro substitui a certeza das relações sociais e a sociedade como a conhecemos míngua na obsolescência.

II. A totalidade inclui a sociedade

Como generais entregando uma contagem de seus exércitos, os líderes do capitalismo de vigilância têm o cuidado de assegurar aos aliados seu grande poder. Isso é tipicamente expresso em um inventário das tropas instrumentárias reunidas na fronteira, prontas para a rendição de tudo em busca da totalidade. Essa busca, evidentemente, não tem apenas consequências para a sociedade; ela inclui a sociedade.

Na primavera de 2017, Satya Nadella, CEO da Microsoft, se dirigiu ao palco para abrir a conferência anual de desenvolvedores da empresa, com seu perfil esbelto acentuado pela necessária camisa polo preta, calça jeans preta e os tênis high-tops pretos da moda. Rapidamente deslumbrou a plateia ao listar suas tropas. Relatou os 500 milhões de dispositivos Windows 10; 100 milhões de usuários mensais de seu software Office; 140 milhões de usuários mensais do “assistente” digital da corporação, Cortana; e mais de 12 milhões de organizações assinaram seus serviços na nuvem, incluindo 90% das 500 maiores empresas da revista Fortune.

Nadella não deixou de lembrar à audiência sobre a velocidade esmagadora que impulsiona o projeto instrumentário, sob a forma de uma explosão de choque e pavor, especialmente nos anos desde que o capitalismo de vigilância passou a dominar os serviços digitais: o tráfego na Internet aumentou 17,5 milhões de vezes em relação aos 100 gigabytes por dia de 1992; 90% dos dados em 2017 foram gerados nos dois anos anteriores; um único carro autônomo gerará 100 gigabytes por segundo; estima-se que haverá 25 bilhões de dispositivos inteligentes até 2020. “É impressionante ver o progresso em toda a profundidade e amplitude de nossa sociedade e economia e como a tecnologia digital está tão difundida… Trata-se do que você pode fazer com essa tecnologia para ter um amplo impacto”. Sua última exortação aos desenvolvedores reunidos – “Mude o mundo!” – recebeu uma estrondosa salva de palmas.2

Ao celebrar as ambições da Google com os desenvolvedores da empresa em 2017, o CEO Sundar Pichai correu paralelamente a Nadella, mostrando a força de sua tropa enquanto os batalhões da Google se lançavam para abarcar cada canto da vida social, demonstrando a amplitude e profundidade do poder instrumentário da corporação com um zelo que teria feito o professor Skinner exultar. Pichai relata que sete dos “produtos e plataformas” mais importantes da empresa envolvem um bilhão de usuários ativos mensais, incluindo Gmail, Android, Chrome, Maps, Search, YouTube e a Google Play Store; dois bilhões de dispositivos Android ativos; 800 milhões de usuários ativos mensais do Google Drive com três bilhões de objetos carregados a cada semana; 500 milhões de usuários de fotos carregando 1,2 bilhão de fotos por dia; 100 milhões de dispositivos usando o Google Assistant. Cada dispositivo é reformulado como um veículo para o Assistente, que estará disponível “durante todo o dia, em casa e nos deslocamentos” para todo tipo de tarefa ou função social. Pichai quer ainda mais, dizendo à sua equipe: “Devemos ir mais fundo”. O Assistente deve estar onde “as pessoas possam querer pedir ajuda”. Os executivos da Google compartilham o entusiasmo. “A tecnologia está agora à beira de nos levar a uma era mágica”, escreve Eric Schmidt, “resolvendo hoje problemas que simplesmente não conseguíamos resolver por conta própria”.3 O aprendizado de máquina, diz ele, fará de tudo, desde curar a cegueira até salvar os animais da extinção. Acima de tudo, porém, é o fundador Larry Page que há muito tempo está de olho na transformação da sociedade.

“A meta social é a nossa meta principal”, disse Page ao Financial Times em 2016.4 “Precisamos de mudanças revolucionárias, não de mudanças incrementais”, disse ele a outro entrevistador naquele ano. “Poderíamos provavelmente resolver muitos dos problemas que temos como humanos”.5 Grande parte da visão futura de Page se revela ser uma utopia, temas que têm sido repetidos por milênios. Page antecipa que a inteligência de máquina vai levar a humanidade de volta ao Jardim do Éden, libertando-nos do trabalho árduo e do conflito em direção a um novo reino de lazer e realização. Ele prevê, por exemplo, uma sociedade futura agraciada pela “abundância” de tudo, onde o emprego seria apenas uma “louca” memória distante.6

O mais incomum, entretanto, é que Page retrata as ambições totalistas da Google como uma consequência lógica de seu compromisso com a perfeição da sociedade. Do seu ponto de vista, devemos saudar a oportunidade de nos apoiar no Grande Outro e subordinar de boa vontade todos os conhecimentos e direitos de decisão ao plano da Google. Para o bem do plano, a totalidade da sociedade – cada pessoa, objeto e processo – deve ser encurralada nas cadeias produtivas que alimentam as máquinas, que, por sua vez, giram os algoritmos que animam o Grande Outro para administrar e mitigar nossa fragilidade:

O que você deve querer que façamos é realmente construir produtos surpreendentes e para fazer isso… temos que entender os aplicativos e as coisas e as passagens aéreas que você poderia comprar. Temos que entender qualquer coisa que você possa buscar. E as pessoas são uma grande coisa que você poderia buscar… Vamos colocar as pessoas como um objeto de primeira classe nas buscas… Se queremos fazer um bom trabalho atendendo às suas necessidades de informação, precisamos realmente entender as coisas e entendê-las muito profundamente.7

O conhecimento total é alardeado como um requisito para os serviços “antecipativos” que levam à solução das soluções no “Assistente da Google”, onisciente e movido a IA:

[O objetivo] é realmente tentar entender tudo no mundo e dar sentido a isso… Muitas perguntas são, na verdade, sobre lugares, então precisamos entender os lugares… Muitas das perguntas são sobre conteúdo que não conseguimos encontrar. Demos conta dos livros, e tal… Então, temos expandido gradualmente… Talvez você não queira fazer uma pergunta. Talvez você queira apenas ter uma resposta antes mesmo de fazer a pergunta. Isso seria muito melhor.8

A Google originou-se da esperança de organizar de forma ideal as informações do mundo, mas Page quer que a corporação otimize a organização da própria sociedade: “Na minha visão de mundo a muito longo prazo”, disse em 2013, “nosso software entenderá profundamente o que você sabe, o que você não sabe e como organizar o mundo para que o mundo possa resolver problemas importantes”.9

O CEO do Facebook Mark Zuckerberg compartilha dessas ambições totalistas e ele é cada vez mais franco sobre “a sociedade”, e não apenas os indivíduos dentro dela, como subordinada ao avanço do Facebook. Seus “três grandes objetivos empresariais” incluem “conectar todas as pessoas; entender o mundo; e construir a economia do conhecimento, para que cada usuário tenha ‘mais ferramentas’ para compartilhar ‘diferentes tipos de conteúdo’”.10 O apreço de Zuckerberg pelas instabilidades da segunda modernidade* – e o anseio por apoio e conexão que está entre suas características mais vivas – aumenta sua confiança, assim como fez com a do economista da Google Hal Varian. A corporação acabaria por conhecer cada livro, filme e canção que uma pessoa já tivesse consumido. Modelos preditivos permitiriam à corporação “dizer-lhe a que bar ir” quando você chega em uma cidade estranha. A visão é detalhada: quando você chega ao bar, o atendente já está com sua bebida favorita te esperando e quando você olha ao redor, identifica que as pessoas são como você.

Zuckerberg descreveu o fluxo de mais-valia comportamental como “crescendo a um ritmo exponencial… de modo a podermos esperar… daqui a dois anos que as pessoas estarão compartilhando o dobro… em quatro anos, oito vezes mais…”. E em um aceno para a já premente competição pela totalidade, Zuckerberg antecipou que o grafo social do Facebook “começará a ser um mapa mais preciso de como você navega na web do que a tradicional estrutura de links”.11

Para esse fim, o CEO disse aos investidores que o Facebook forneceria acesso barato à internet “a todas as pessoas do mundo” para que cada usuário tivesse “mais ferramentas” para compartilhar “diferentes tipos de conteúdo”.12 Nada poderia impedir o progresso da corporação no fronte da sociedade, afirmou ele, porque “os humanos têm um desejo muito profundo de se expressar”.13

Em 2017, Zuckerberg foi ainda mais longe na articulação de suas ambições societais, dessa vez visando diretamente o coração das ansiedades de segunda modernidade: “As pessoas se sentem inseguras, desajustadas. Muito do que estava se firmando no passado já não existe mais”. Zuckerberg acredita que ele e sua empresa podem proporcionar um futuro “que funcione para todos” e satisfaça “necessidades pessoais, emocionais e espirituais” com respeito a “propósito e esperança”, “validação moral” e “conforto de que não estamos sozinhos”. “O progresso agora exige que a humanidade se una não apenas em cidades ou nações”, insistiu Zuckerberg, “mas também em uma comunidade global… A coisa mais importante que podemos fazer no Facebook é desenvolver a infraestrutura social… para construir uma comunidade global…”. Citando Abraham Lincoln, o fundador do Facebook localizou a missão de sua empresa na linha do tempo evolutivo da civilização, durante a qual a humanidade se organizou primeiro em tribos, depois em cidades, depois em nações. A fase seguinte da evolução social seria a “comunidade global” e o Facebook deveria abrir o caminho, construindo os meios e supervisionando os fins.14

Na sua fala na conferência de desenvolvedores do Facebook de 2017, Zuckerberg ligou sua afirmação do papel histórico da empresa no estabelecimento de uma “comunidade global” ao mito padrão da utopia moderna, assegurando a seus seguidores: “No futuro, a tecnologia vai… nos libertar para podermos gastar mais tempo com as coisas que todos nós gostamos, como desfrutar e interagir uns com os outros e nos expressar de novas maneiras… Muito mais pessoas farão o que hoje é chamado de artes e isso formará a base de muitas de nossas comunidades”.15

Enquanto Nadella e outros capitalistas de vigilância fabricam seus sonhos utópicos, os capitalistas de vigilância não mencionam que a era mágica que eles imaginam tem um preço: O Grande Outro deve se expandir em direção à totalidade à medida que elimina todos os limites e supera todas as fontes de fricção a serviço de seus imperativos econômicos. Todo poder anseia pela totalidade e somente uma autoridade pode se interpor no caminho: instituições democráticas; leis; regulamentos; direitos e obrigações; regras e contratos de governança privada; as restrições normais do mercado exercidas por consumidores, concorrentes e empregados; a sociedade civil; a autoridade política do povo; e a autoridade moral dos seres humanos individuais com os seus jeitos.

Esse ponto foi mencionado na fábula de Goethe sobre o aprendiz de feiticeiro, quando, na ausência da autoridade do feiticeiro para orientar e verificar a ação, o aprendiz transforma a vassoura em uma força demoníaca de puro e implacável poder:

Ah, a palavra com a qual o mestre
faz da vassoura uma vassoura novamente!
Ah, ela corre e pega água sem parar!
Seja um cabo de vassoura como antes!
Ela continua trazendo água
tão rapidamente quanto possível,
e uma centena de rios
Ela despeja sobre minha cabeça!* 16

III. Utopística Aplicada

O poder instrumentário, como a vassoura do aprendiz, floresceu na ausência do feiticeiro com pouca autoridade para verificar/regular sua ação e o apetite dos capitalistas de vigilância pela totalidade cresceu com esse sucesso. A retórica utópica de uma era mágica tem sido fundamental para esse progresso. A noção de que o Grande Outro resolverá todos os problemas da humanidade e, ao mesmo tempo, dará poder a cada indivíduo é geralmente descartada como mero “tecno-utopismo”, mas seria um erro ignorarmos essa retórica sem examinarmos seu propósito. Tal discurso não é uma mera “bobajada”. É o detector de minas que precede os soldados rasos e também o diplomata hábil enviado de antemão para desarmar o inimigo e facilitar o caminho para uma rendição silenciosa. A promessa de uma era mágica desempenha um papel estratégico chave, nos distraindo e legitimando simultaneamente as ambições totalistas do capitalismo de vigilância que necessariamente incluem “pessoas” como um “objeto de primeira classe”.

Falanstério

O “objetivo societal” articulado pelos principais capitalistas de vigilância se encaixa perfeitamente na noção de progresso tecnológico sem limites que dominou o pensamento utópico do final do século XVIII até o final do século XIX, culminando com Marx. De fato, capitalistas de vigilância como Nadella, Page e Zuckerberg se enquadram em cinco dos seis elementos com os quais os grandes estudiosos do pensamento utópico, Frank e Fritzie Manuel, definem o perfil clássico dos mais ambiciosos utópicos modernos: (1) uma tendência para uma visão altamente focalizada que simplifica o desafio utópico, (2) uma compreensão mais precoce e incisiva sobre um “novo estado de ser” do que outros contemporâneos, (3) a busca e defesa obsessiva por uma ideia fixa, (4) uma crença inabalável na inevitabilidade de que suas ideias vão se concretizar, e (5) o impulso para a reforma total no nível da espécie e de todo o sistema mundial.17

Os Manuels observam uma sexta característica do visionário moderno que avança para o futuro e é aqui que os homens e as corporações que estamos examinando representam poderosas exceções à regra: “Muitas vezes um utópico prevê a evolução posterior e as consequências do desenvolvimento tecnológico já presente em estado embrionário; ele pode ter antenas sensíveis ao futuro. Suas engenhocas, porém, raramente vão além das potencialidades mecânicas da sua época. Por mais que ele tente inventar algo totalmente novo, não poderá criar um mundo do nada”.18 Em nosso tempo, no entanto, os capitalistas de vigilância podem e criam um mundo assim – um desvio genuinamente histórico da norma.

Individual e coletivamente, o conhecimento, o poder e a riqueza que os capitalistas de vigilância comandam faria a inveja de qualquer potentado antigo, assim como agora são cobiçados pelo Estado moderno. Com os balanços de 2017 relatando $126 bilhões em dinheiro e títulos para a Microsoft, $92 bilhões para a Google e cerca de $30 bilhões para o Facebook, e os mercados financeiros endossando seus regimes instrumentários em constante expansão com mais de $1,6 trilhão em capitalização de mercado em meados de 2017, esses são os raros utopistas que podem supervisionar a tradução de sua imaginação para os fatos sem soldados para abrir o caminho com sangue.19

A esse respeito, os líderes do capitalismo de vigilância são utópicos muito particulares. Marx descreveu com perspicácia o mundo com sua teoria espessa e articulada. Porém, apenas com o poder de suas ideias, ele não pôde implementar sua visão. Muito depois da publicação das teorias de Marx, homens como Lenin, Stalin e Mao as aplicaram à vida real. De fato, os Manuels descrevem Lênin como um especialista em “utopística aplicada”.20 Em contraste, os capitalistas de vigilância apreendem o mundo na prática. Suas teorias são tênues – pelo menos isso é verdade sobre o pensamento que eles compartilham com o público. O oposto é verdadeiro sobre o seu poder, que é monumental e em grande parte desimpedido.

Quando se trata de teoria e prática, a sequência usual é que a teoria está disponível para inspecionar, interrogar e debater antes de se iniciar a ação. Isso permite aos observadores uma oportunidade de julgar o mérito de uma teoria para aplicação, de considerar as consequências imprevistas da aplicação e de avaliar a fidelidade de uma aplicação à teoria na qual ela se origina. A lacuna inevitável entre teoria e prática cria um espaço para a investigação crítica. Por exemplo, podemos questionar se uma lei ou prática governamental é consistente com a constituição de uma nação, a carta de direitos e os princípios governantes, porque podemos inspecionar, interpretar e debater esses documentos. Se a lacuna for muito grande, os cidadãos agem para fechar a lacuna, desafiando a lei ou a prática.

Os capitalistas de vigilância invertem a sequência normal da teoria e da prática. Suas práticas avançam em alta velocidade, na ausência de uma teoria explícita e contestável. Eles se especializam em exibições da marca única do instrumentarianismo – chocar e intimidar –, deixando os espectadores atordoados, incertos e desamparados. Na ausência de uma formulação clara de sua teoria, ficamos apenas com a possibilidade de refletir sobre seus efeitos práticos: o sistema de monitoramento veicular que desliga seu motor; o destino que aparece com a rota; a sugestão de compra que pisca em seu telefone no momento em que suas endorfinas atingem o pico; o contínuo rastreamento de sua localização, comportamento e humor pelo Grande Outro; e seu alegre rebanho de habitantes de cidades se transformando em clientes do capitalismo de vigilância.

Por mais parcas e secretas que sejam as teorias dos capitalistas de vigilância, o poder instrumentário que eles exercem pode tornar seus sonhos realidade, ou, pelo menos, causar um turbilhão de consequências enquanto eles tentam. A única maneira de entender a teoria por trás de sua utopística aplicada é fazendo engenharia reversa em suas operações e examinar seu significado, como temos feito ao longo destes capítulos.

A utopística aplicada está em movimento no Facebook, Google e Microsoft como a fronteira da extração de mais-valias comportamentais move-se para reinos da vida tradicionalmente entendidos como societais e elaborados sob alguma combinação de instituições civis e liderança pública. A declaração de missão de Zuckerberg para o Facebook em 2017, apresentada como a “construção de uma comunidade global”, anunciou uma nova fase de utopística aplicada: “Em geral, é importante que a governança de nossa comunidade seja dimensionada com a complexidade e as exigências de seu povo. Estamos comprometidos em fazer sempre melhor, mesmo que isso envolva a construção de um sistema de votação mundial para lhe dar mais voz e controle. Nossa esperança é que esse modelo forneça exemplos de como a tomada de decisão coletiva pode funcionar em outros aspectos da comunidade global”.21 Mais tarde naquele ano, Zuckerberg disse a um público de desenvolvedores que “temos um roteiro completo de produtos para ajudar a construir grupos e comunidades, ajudar a construir uma sociedade mais informada, ajudar a manter nossas comunidades seguras e temos muito mais a fazer a esse respeito”.22

De volta àquele palco na primavera de 2017, Nadella, da Microsoft, encorajou seus desenvolvedores: “Seja pela medicina de precisão ou pela agricultura de precisão, seja pela mídia digital ou pela internet industrial, a oportunidade para nós, como desenvolvedores, de ter um impacto amplo e profundo em todas as partes da sociedade e em todos os setores da economia nunca foi tão grande”.23 A visão que Nadella revelou naquele dia é emblemática do modelo capitalista de vigilância mais amplo para nosso futuro. Aonde eles pensam que estão nos levando?

IV. Confluência como relações entre máquinas

A fim de decifrar a verdadeira medida de uma sociedade instrumentária, deixemos de lado a “era mágica” e nos concentremos nas práticas da utopística aplicada e na visão social que elas implicam. Nadella forneceu uma oportunidade valiosa quando revelou uma série de aplicações práticas que implicam uma nova visão abrangente das relações entre máquinas como modelo para as relações sociais de uma nova era.

A revelação começa com o relato de Nadella de uma colaboração da Microsoft com uma fabricante sueca de equipamentos de corte de metal de alta precisão que existe há 150 anos e se reinventou para o século XXI. O projeto é uma ilustração do que Nadella descreve como a “mudança fundamental no paradigma das aplicações que estamos construindo, uma mudança na visão de mundo que temos… que começou pelo celular, pela nuvem, e está indo para um novo mundo que será composto por uma nuvem inteligente e uma borda inteligente*”. A inteligência artificial, diz ele, “aprende da informação e interage com o mundo físico”, citando assim as capacidades necessárias para economias de ação.24

Nadella primeiro descreve as máquinas ligadas por telemetria no novo ambiente de fábrica. Elas transmitem continuamente os dados para o “hub da Internet das Coisas”* na “nuvem”, onde as análises da Microsoft procuram anomalias que possam colocar as máquinas em risco. Cada anomalia é rastreada através do fluxo de dados até sua causa e a inteligência da máquina no “hub” aprende a identificar os padrões causais para que possa desligar preventivamente um equipamento ameaçado em cerca de dois segundos, antes que um evento potencialmente prejudicial possa ocorrer.

Em seguida, Nadella descreve a nova “capacidade revolucionária” na qual um sensor de acionamento computacional é incorporado diretamente na máquina, reduzindo drasticamente o tempo de um desligamento preventivo: “Essa lógica agora está funcionando localmente, de modo que não há ida e volta da nuvem”. A “borda” sabe imediatamente quando a máquina experimenta um evento que irá se tornar uma anomalia futura e desliga o equipamento em 100 milissegundos, uma “melhoria de 20 vezes”. Isso é celebrado como “o poder da nuvem trabalhando em harmonia com uma borda inteligente” para antecipar e prevenir variações da norma “antes que elas aconteçam”.25

O poder da aprendizagem de máquina se desenvolve exponencialmente à medida que os dispositivos aprendem com as experiências uns dos outros, alimentando e aproveitando a inteligência do hub. Neste cenário, não é que o todo seja maior que a soma das partes; é mais como se não houvesse partes. O todo está em toda parte, totalmente manifesto em cada dispositivo embutido em cada máquina. Nadella traduz esses fatos em sua aplicação prática, observando que uma vez que você tenha muitos dispositivos ao redor, um “centro de dados ad hoc” é criado “no chão de fábrica, em casa, ou em qualquer outro lugar… Você pode transformar qualquer lugar em um lugar seguro, movido por IA”.26

Com essa afirmação, finalmente fica claro que “seguro” significa “automaticamente livre de anomalias”. Na fábrica da Nadella, o conhecimento da máquina substitui instantaneamente a ignorância, agrupando todos os comportamentos das máquinas dentro de normas preestabelecidas. Ao invés da preocupação com a multiplicação do risco e o contágio do fracasso caso o aprendizado da máquina se desvie, Nadella celebra a sincronia e a universalidade de certos resultados, pois cada máquina é a mesma máquina marchando no mesmo ritmo.

Assim como há um século a lógica da produção em massa e sua administração de cima para baixo forneceu o modelo para os princípios da sociedade industrial e seu meio civilizatório mais amplo, assim também a fábrica da nova era de Nadella se revelou como o campo de prova para sua visão social – a visão do capitalismo de vigilância de uma sociedade instrumentária possibilitada por uma nova forma de ação coletiva. A aprendizagem de máquina é aqui apresentada como uma mente coletiva – uma mente-colmeia* – na qual cada elemento aprende e opera em conjunto com todos os outros elementos, um modelo de ação coletiva no qual todas as máquinas de um sistema em rede se movem sem problemas em direção à confluência, todas compartilhando o mesmo entendimento e operando em uníssono com a máxima eficiência para alcançar os mesmos resultados. Ação confluente significa que a “liberdade” de cada máquina individual está submetida ao conhecimento que todas elas compartilham. Assim como os teóricos comportamentais Planck, Meyer e Skinner previram, esse sacrifício equivale a uma guerra total contra acidentes, erros e aleatoriedades em geral.

Nadella pega esse modelo de novas relações de máquinas e o aplica criando uma ilustração mais complexa de um sistema humano-máquina, embora ainda no “domínio econômico”. Dessa vez, é um canteiro de obras, onde os comportamentos humanos e de máquina são ajustados a parâmetros preestabelecidos determinados pelos superiores e referidos como “políticas” (procedimentos). Os não-contratos algorítmicos* aplicam regras e substituem funções sociais como supervisão, negociação, comunicação e resolução de conflitos. Cada pessoa e equipamento assume um lugar numa equivalência de objetos, cada um “reconhecível” para o “sistema” através dos dispositivos de IA distribuídos pelo local de trabalho.

Por exemplo, o treinamento, as credenciais, o histórico de emprego e outras informações básicas de cada indivíduo são exibidos instantaneamente para o sistema. Uma “política” pode determinar que “somente funcionários credenciados podem usar martelos pneumáticos”. Se um funcionário não credenciado para o uso de martelo pneumático se aproximar dessa ferramenta, a possibilidade de uma violação iminente é acionada e o martelo pneumático emite um alerta, desabilitando-se instantaneamente.

Evidentemente, não é apenas a ação unificada de coisas no local de trabalho que é mobilizada para se alinhar às políticas/procedimentos. A ação humana confluente também é mobilizada, à medida que os processos de influência social são desencadeados no trabalho preventivo de evitar anomalias. No caso do martelo pneumático “em risco”, os humanos no local são mobilizados para se aglomerarem no local do delito anômalo previsto pela IA a fim de “resolvê-lo rapidamente”. “A borda inteligente”, dizem os desenvolvedores da Microsoft, “é a interface entre o computador e o mundo real… [onde] você pode procurar pessoas, objetos e atividades no mundo real e aplicar políticas a eles…”.27

Uma vez que as pessoas e suas relações sejam renderizadas como “outros”, como “coisas na nuvem”, 25 bilhões de atuadores digitais podem ser mobilizados para moldar o comportamento em torno de parâmetros de “política” seguros e harmoniosos. A “mudança mais profunda”, explicou Nadella, é que “as pessoas e seu relacionamento com as outras é agora uma coisa de primeira classe na nuvem. Não são apenas as pessoas, mas suas relações, são suas relações com todos os artefatos de trabalho, seus horários, seus planos de projeto, seus documentos; tudo isso agora se manifesta nesse Grafo da Microsoft”. Esses fluxos de informação total são fundamentais para otimizar “o futuro da produtividade”, exultou Nadella.28

Na sociedade instrumentária da Microsoft, as fábricas e os locais de trabalho são como os laboratórios de Skinner e as máquinas substituem seus pombos e ratos. Esses são os ambientes onde a arquitetura e as velocidades do poder instrumentário estão prontas para serem traduzidas à sociedade em uma iteração da era digital da Walden Two, na qual as relações entre máquinas são o modelo para as relações sociais. O canteiro de obras de Nadella exemplifica a grande confluência na qual máquinas e seres humanos estão unidos como objetos na nuvem, todos instrumentados e orquestrados de acordo com as “políticas”. A magnificência das “políticas” reside precisamente no fato de que elas aparecem em cena como resultados garantidos a serem automaticamente impostos, monitorados e mantidos pelo “sistema”. Elas são assentadas nas operações do Grande Outro, uma infinidade de não-contratos desligados de qualquer dos processos sociais associados à governança privada ou pública: conflito e negociação, promessa e compromisso, acordo e valores compartilhados, disputa democrática, legitimação e autoridade.

O resultado é que as “políticas” são funcionalmente equivalentes a planos, já que o Grande Outro dirige a ação humana e de máquinas. Ele garante que as portas serão trancadas ou destravadas, os motores dos carros serão desligados ou ganharão vida, o martelo pneumático apitará um “não” em autossacrifício suicida, o trabalhador aderirá às normas, o grupo se aglomerará para derrotar as anomalias. Estaremos todos seguros, pois cada organismo zumbirá junto aos outros como abelhas, numa harmonia concertada. Se parecerá menos a uma sociedade do que a uma população que ascende e reflui em perfeita confluência sem atritos, moldada pelos meios de modificação comportamental que iludem nossa consciência e, portanto, não podem ser lamentados nem resistidos.

Assim como a divisão do trabalho migrou, no século XX, do domínio econômico para o da sociedade, o canteiro de obras de Nadella é a placa de petri* econômica na qual uma nova divisão do aprendizado ganha vida, pronta para ser traduzida para a sociedade. No século XX, os fatores críticos de sucesso do capitalismo industrial – eficiência, produtividade, padronização, intercambialidade, a minuciosa divisão do trabalho, disciplina, atenção, programação, conformidade, administração hierárquica, separação do saber e do fazer, etc. – foram descobertos e trabalhados no local de trabalho e depois transpostos para a sociedade, onde foram institucionalizados nas escolas, nos hospitais, na vida familiar e na personalidade. Como gerações de estudiosos têm documentado, a sociedade se tornou mais parecida com uma fábrica para que pudéssemos treinar e socializar os mais jovens para que se adaptassem às novas exigências de uma ordem de produção em massa.

Entramos novamente nesse ciclo, mas agora o objetivo é refazer a sociedade do século XXI como uma “coisa de primeira classe” organizada à imagem de uma colmeia de máquinas, em nome da certeza de outros. A capacidade de nos conectarmos que antes buscávamos para o sustento e a efetividade pessoais é reformulada como o meio para novas formas de poder e a confluência social que se traduz em resultados garantidos.

V. Confluência como Sociedade

Os cientistas da Microsoft vêm trabalhando há anos em como adotar a mesma lógica de controle preventivo automatizado na borda da rede e transpô-la para as relações sociais. Como Nadella observou em 2017, se “nós” podemos fazer isso em um “lugar físico”, também é possível ser feito “em todo lugar” e “em qualquer lugar”. Assim, aconselhou sua audiência de utopistas aplicados da seguinte forma: “Vocês poderiam começar pensando sobre as pessoas, seu relacionamento com outras pessoas, com as coisas do lugar…”.29

A gama imaginativa desse novo pensamento é demonstrada em um pedido de patente da Microsoft, feito em 2013 e atualizado e republicado em 2016, intitulado “Monitoramento do Comportamento do Usuário em um Dispositivo Computadorizado”.30 Com uma teoria visivelmente fina complementada por uma prática espessa, o dispositivo patenteado é projetado para monitorar o comportamento do usuário a fim de detectar de forma preventiva “qualquer desvio do comportamento normal ou aceitável que possa afetar o estado mental do usuário. Um modelo de previsão correspondente a características de um ou mais estados mentais pode ser comparado com características baseadas no comportamento atual do usuário”.

Os cientistas propõem um aplicativo que pode ser instalado em um sistema operacional, servidor, navegador, telefone ou dispositivo portátil que monitora continuamente os dados comportamentais de uma pessoa: interações com outras pessoas ou computadores, postagens de mídia social, consultas de busca e atividades on-line. O aplicativo pode ativar sensores para gravar voz e conversas, vídeos e imagens, e movimentos, tais como detectar “quando o usuário se envolve em gritaria excessiva examinando as chamadas telefônicas do usuário e comparando características relacionadas com o modelo de previsão”.

Todos esses dados comportamentais são armazenados para futuras análises históricas, a fim de melhorar o modelo de previsão. Se o usuário normalmente restringe o volume de sua voz, então gritaria excessiva repentina pode indicar um “evento psicossocial”. Alternativamente, o comportamento poderia ser avaliado em relação a uma “distribuição de características que representem um comportamento normal e/ou aceitável para um membro médio de uma população…; um desvio estatisticamente significativo daquela linha de base de comportamento indicaria uma série de possíveis eventos psicológicos”. A proposta inicial é que no caso de uma anomalia, o dispositivo alertaria “indivíduos de confiança”, tais como membros da família, médicos e cuidadores. Mas o círculo se amplia à medida que as especificações da patente se desdobram. Os cientistas apontam a utilidade desses alertas para os prestadores de serviços de saúde, companhias de seguro e agentes da lei. Aqui está uma nova oportunidade de vigilância como um serviço voltado para antecipar qualquer comportamento que os clientes escolham.

A patente da Microsoft nos coloca de volta frente a Planck, Meyer e Skinner e o ponto de vista do Outro-Único. Na sua representação do comportamento humano baseada no mundo físico, as anomalias são “acidentes” chamados liberdade, mas, na verdade, denotam ignorância; eles simplesmente não podem ser explicados pelos fatos. Planck/Meyer/Skinner acreditavam que a perda dessa liberdade era o preço necessário a ser pago pela “segurança” e “harmonia” de uma sociedade livre de anomalias, na qual todos os processos são otimizados para o bem maior. Skinner imaginava que com a tecnologia correta de comportamento, o conhecimento poderia eliminar antecipadamente as anomalias, conduzindo todo comportamento em direção a parâmetros preestabelecidos que se alinham com as normas e objetivos sociais. “Se pudéssemos mostrar que nossos membros preferiam a vida na Walden Two”, diz Frazier-Skinner, “seria a melhor evidência possível de que tínhamos alcançado uma estrutura social segura e produtiva”.31

Nesse modelo de relações sociais, a modificação comportamental opera logo além do limiar da consciência humana para induzir, recompensar, punir e reforçar o comportamento consistente com “políticas corretas”. Assim, o Facebook descobre que pode previsivelmente mover o botão de ajuste social no caso dos padrões de votação, estados emocionais, ou qualquer outra coisa que escolher. Niantic Labs e Google descobriram que podem previsivelmente aumentar os ganhos do McDonald’s ou de qualquer outro cliente. Em cada caso, os objetivos corporativos definem as “políticas” para as quais o comportamento confluente flui harmoniosamente.

As máquinas-colmeia – a mente confluente criada pelo aprendizado da máquina – é o meio material para a eliminação final dos elementos caóticos que interferem nos resultados garantidos. Eric Schmidt e Sebastian Thrun, o guru da inteligência de máquina que uma vez dirigiu o laboratório X da Google e ajudou a liderar o desenvolvimento do Street View e do carro autônomo da Google, defendem esse ponto ao falar dos veículos autônomos da Alphabet. “Vamos parar de nos assustar com a inteligência artificial”, escrevem.

Schmidt e Thrun enfatizam a “percepção crucial que diferencia o aprendizado da IA da forma como as pessoas aprendem”.32 Em vez das típicas garantias de que as máquinas podem ser projetadas para serem mais como seres humanos e, portanto, menos ameaçadoras, Schmidt e Thrun argumentam exatamente o contrário: é necessário que as pessoas se tornem mais como máquinas. A inteligência das máquinas é endeusada como a apoteose da ação coletiva, na qual todas as máquinas de um sistema em rede se movem sem percalços em direção à confluência, todas compartilhando o mesmo entendimento e, assim, operando em uníssono com a máxima eficiência para alcançar os mesmos resultados. Os martelos pneumáticos não avaliam independentemente sua situação; cada um deles aprende o que todos aprendem. Cada um deles reage da mesma forma a mãos não credenciadas, seus cérebros operando como um em serviço da “política”. As máquinas ficam de pé ou caem juntas, acertam ou erram juntas. Como Schmidt e Thrun lamentam,

ao dirigir, as pessoas aprendem principalmente com seus próprios erros, mas raramente aprendem com os erros dos outros. As pessoas coletivamente cometem os mesmos erros seguidamente. Como resultado, centenas de milhares de pessoas morrem todos os anos no mundo inteiro em colisões de trânsito. A IA evolui de forma diferente. Quando um dos carros autônomos comete um erro, todos os carros autônomos aprendem com ele. Na verdade, novos carros autônomos já “nascem” com o conjunto completo de habilidades de seus antepassados e colegas. Assim, coletivamente, esses carros podem aprender mais rápido do que as pessoas. Com essa percepção, em pouco tempo, os carros autônomos se misturam de maneira segura em nossas estradas ao lado de motoristas humanos, pois continuam aprendendo com os erros uns dos outros…. Ferramentas sofisticadas alimentadas por IA nos capacitarão a aprender melhor com as experiências dos outros…. A lição com carros que dirigem por conta própria é que podemos aprender mais e fazer mais coletivamente.33

Essa é uma afirmação sucinta, mas extraordinária, sobre a aplicação do modelo de máquina para as relações sociais de uma sociedade instrumentária. A essência desses fatos é que, primeiro, as máquinas não são indivíduos, e segundo, deveríamos ser mais como máquinas. As máquinas imitam umas às outras e nós também devemos fazer o mesmo. As máquinas se movem em confluência: não como muitos rios, mas como um só, e nós também devemos ser assim. Cada uma das máquinas é estruturada pelo mesmo raciocínio e flui em direção ao mesmo objetivo e assim também devemos ser estruturados.

O futuro instrumentário integra essa visão simbiótica na qual o mundo das máquinas e o mundo social operam em harmonia dentro e através da “espécie” à medida que os seres humanos imitam os processos superiores de aprendizagem das máquinas inteligentes. Essa emulação não pretende ser um retrocesso ao Taylorismo da produção em massa ou ao trabalhador infeliz de Chaplin, engolido pela ordem mecânica. Em vez disso, essa prescrição de simbiose toma um caminho diferente no qual a interação humana espelha as relações das máquinas inteligentes à medida que os indivíduos aprendem a pensar e agir emulando uns aos outros, assim como os carros autônomos e os martelos pneumáticos que adoram a política/procedimento.

Dessa forma, a colmeia-máquina torna-se o modelo para uma nova colmeia humana na qual marchamos em uníssono pacífico em direção à mesma direção com base no mesmo entendimento “correto”, a fim de construir um mundo livre de erros, acidentes e confusões aleatórias. Nesse mundo, os resultados “corretos” são conhecidos antecipadamente e garantidos através da ação. A mesma instrumentação e transparência ubíquas que definem o sistema de máquinas também deve definir o sistema social, que no final é simplesmente outra forma de descrever a verdade fundamental da sociedade instrumentária.

Nessa colmeia humana, a liberdade individual é perdida para o conhecimento e a ação coletivos. Elementos não harmoniosos são visados preventivamente com altas doses de regulação, arrebanhamento e condicionamento, incluindo toda a força sedutora da persuasão e influência social. Marchamos com a certeza, como as máquinas inteligentes. Aprendemos a sacrificar nossa liberdade ao conhecimento coletivo imposto por outros e em prol de seus resultados garantidos. Essa é a assinatura da terceira modernidade oferecida pelo capital de vigilância – sua resposta à nossa busca por uma vida em comum efetiva.

*O poder instrumentário [instrumentarian power] é o poder de governos e corporações de usar tecnologia e infraestrutura para manipular as pessoas de forma sutil porém efetiva. Ele transforma as pessoas em “instrumentos” que são usados de maneira previsível para alcançar os objetivos de governos e corporações.

*A segunda modernidade é um conceito criado pelo sociólogo alemão Ulrich Beck através do qual ele afirma que onde a modernidade desmantelou a sociedade agricultural em favor da industrial, a segunda modernidade transforma a sociedade industrial em uma nova e mais reflexiva sociedade em rede ou informacional. Esta é marcada por uma nova compreensão e percepção dos riscos criados pelos próprios sucessos da modernidade ao lidar com o problema da escassez humana. Os sistemas que anteriormente pareciam oferecer proteção contra riscos tanto naturais quanto sociais estão cada vez mais sendo percebidos como produtores de novos riscos, dessa vez criados pelos seres humanos, com alcance global, como subproduto do seu próprio funcionamento.

*A tradução do trecho é uma misturança que visa causar o efeito que a autora sugere.

*Segundo a Microsoft, Intelligent Edge refere-se ao “conjunto de sistemas e dispositivos conectados, em contínua expansão, que coleta e analisa dados na ponta– junto aos usuários, aos dados, ou a ambos. Os usuários recebem, assim, ideias e experiências entregues por aplicativos altamente responsivos e contextualmente atentos.”

*Hub é um equipamento para onde convergem diversas conexões de rede. A internet das coisas (em inglês, internet of things, IoT) nada mais é que uma rede de objetos físicos (veículos, prédios e outros dotados de tecnologia embarcada, sensores e conexão com a rede) capaz de reunir e de transmitir dados. É uma extensão da internet atual que possibilita que objetos do dia-a-dia, quaisquer que sejam mas que tenham capacidade computacional e de comunicação, se conectem à Internet.

*Na computação, mente de colmeia ou inteligência de enxame [swarm intelligence] se refere ao comportamento coletivo de sistemas descentralizados e auto-organizados. No contexto social humano, diz respeito aos pensamentos, ideias e opiniões de um grupo de pessoas que acabam funcionando conjuntamente como uma única mente.

*Segundo Lauren Scholz, “contratos algorítmicos são contratos nos quais um algoritmo determina as obrigações entre as partes. Alguns contratos são algorítmicos porque as partes usaram algoritmos como negociadores prévios à formação do contrato, escolhendo os termos ofertados e os aceitos. Outros contratos são algorítmicos porque as partes concordam que um algoritmo seja utilizado, algum tempo após a formação do contrato, para preencher “alguns buracos”. Tais acordos já são comuns no comércio de alta velocidade de produtos financeiros e em breve irão se espalhar para outros contextos.” Quando Zuboff fala de não-contratos (uncontracts), ela parece se referir aos acordos não contratados, que não foram conversados e consensualizados entre trabalhador e empregador.

*Placa de Petri é um recipiente cilíndrico, achatado, de vidro ou plástico, usado em laboratório para criar culturas microbiológicas. (wikipedia)

lançamento: Centro de Materiais sobre Contra-Vigilância

Há uns meses, recebemos um convite para colaborar com uma iniciativa internacional contra a vigilância do Estado. Essa parceria se desdobrou na tradução para o português do site recém-lançado Centro de Materiais sobre Contra-Vigilância.

O objetivo do site, que possui um software de pesquisa que me impressionou, é servir como um ponto de convergência de materiais produzido, principalmente, por ativistas para ativistas. Ou, como está na sua descrição:

O CSRC fornece uma base de dados pesquisável com materiais sobre contra-vigilância, focados em vigilância direcionada contra pessoas que têm coisas a esconder. Nosso objetivo é ajudar anarquistas e ativistas que lutam contra a opressão a desenvolver uma compreensão das ameaças de vigilância a que estão submetidas no curso de suas lutas e suas vidas. Demos preferência para materiais escritos por ativistas e que sejam compreensíveis sem um conhecimento técnico prévio.

As línguas disponíveis são: castelhano, grego, inglês, francês, italiano, holandês, russo e português.

Qualquer dúvida, sugestão de material ou correção, manda direto pra galera: csrc@riseup.net (a chave PGP tá no site).

Zuboff fala sobre Pokémon Go

No documentário “Shoshana Zuboff on surveillance capitalism” (com legendas em português), a professora dá uma excelente aula sobre a fase atual do capitalismo. Usando uma linguagem simples, ela explica como as megateqs extraem enorme valor da experiência corriqueira das pessoas através da venda de modelos preditivos de comportamento.

Segue abaixo um trecho, extraído da legenda, contando a história do Pokémon Go e como ele funcionava por trás dos panos. Algumas partes da fala foram alteradas para melhorar a fluidez da leitura. Falas de outras partes do documentário foram inseridas entre parênteses para complementar a argumentação.

Numa próxima postagem, publicaremos outra parte, que conta os planos das gigantes não-teqs para também conseguir ganhar essa mais-valia da vigilância inventada pela Google.


É importante compreender que o Pokémon GO é um jogo de realidade aumentada que foi desenvolvido pela Google durante muitos anos, pela pioneira do capitalismo de vigilância.

O Pokémon GO foi desenvolvido num programa liderado por um homem chamado John Hanke. Antes, ele havia criado um software chamado Keyhole, que recebeu investimento da CIA e foi mais tarde adquirido pela Google, mudando o nome para Google Earth.

É importante compreender que o Pokémon GO não é um joguinho que foi lançado para o mundo por uma empresa de brinquedos. Quando decidiram lançar o Pokémon GO, não quiseram fazê-lo como um jogo da Google. Lançaram-no como Niantic Labs, uma empresa que ninguém tinha ouvido falar. Era uma start-up massa com um jogo massa.

Então, vejamos: temos um jogo de realidade aumentada da Google e acontece que o grande jogo, que se sobrepõe ao joguinho que as crianças jogam, é um jogo que imita precisamente a lógica do capitalismo de vigilância.

No capitalismo de vigilância, na sua versão original, online, prevemos a taxa de visitas e vendemos isso ao anunciante, que paga para ter visitas no seu site. Esperava-se que visitas se tornem compras. Agora, no mundo real, clientes empresariais pagaram à Niantic Labs, a empresa do Pokémon GO… Pagaram à Niantic Labs não pelas visitas, mas pelo equivalente no mundo real das visitas, que se chama “passada”. Trata-se de colocar seres humanos, com os seus pés, em negócios reais, para que os seus pés passem por determinada loja, restaurante ou bar, para que comprem algo.

Todos estes negócios compram aquilo a que se chama “módulos de atração”. Módulos que atraem pessoas. Não para que as pessoas sejam felizes, mas para que gastem dinheiro na sua loja ou restaurante. A Starbucks, o McDonald’s, toda a gente estava fazendo dinheiro ali. Obviamente, a Niantic Labs também.

E as pessoas que jogavam o jogo não faziam ideia.

As empresas usaram as recompensas e punições do jogo para “empurrar o rebanho” de pessoas pela cidade, até os locais que pagavam pela sua presença. É isto o Pokémon GO. É este o jogo de verdade, que acontece na sombra. “Empurrar” a pessoa para um lugar onde previmos que ela estará. Para que as nossas previsões valham mais. Se o módulo garantir a presença de pessoas, a minha previsão vale muito mais. É pela economia de ação que eu garanto isso.

E a quem são vendidas essas previsões? A nós, não. Nós não somos os clientes. Elas são vendidas a clientes empresariais (, agências do governo, terceirizadas do ramo da vigilância, exércitos.)

E o Pokémon GO foi uma experiência em escala global de economia de ação. Usou meios de controle remoto para criar comportamentos de forma a atingir os fins comerciais de outras empresas enquanto as pessoas se divertem. Espera-se que você tenha a impressão de estar sendo servida. Espera-se que você seja saturada com conveniência para que não repare e para que não se queixe.

E toda esta operação nas sombras continuará escondida. (Não é por sermos estúpidos que não vemos isso acontecendo. É porque estes procedimentos têm sido mascarados. Operam escondidos. Foram concebidos para serem indecifráveis, indetectáveis, para criar ignorância num vasto grupo de pessoas a que eles chamam “utilizadores”.)

Então, já não é apenas uma questão do que está a fazer online, na Internet, enviando mensagens, e-mails. Nós queremos saber sobre o seu passeio no parque, queremos saber o que faz no carro. Queremos saber o que faz em casa.

[tradução] As piores hackeadas da década

Em inglês na Wired: The Worst Hacks of the Decade

Foram 10 anos difíceis em cibersegurança – e só está piorando.

Na última década, hackear tornou-se menos uma novidade e mais um fato da vida de bilhões de pessoas em todo o mundo. Pessoas comuns perderam o controle de seus dados, enfrentaram vigilância invasiva de regimes repressivos, tiveram suas identidades roubadas, perceberam que um estranho estava à espreita em sua conta Netflix, lidaram com blecautes da Internet impostos pelo governo ou, pela primeira vez, literalmente se viram pegos no meio de uma guerra cibernética destrutiva.

Há décadas era previsível que um mundo cada vez mais informatizado inevitavelmente convidaria ameaças digitais constantes. Mas a evolução real do hackeamento – com todos os seus golpes, mercados negros criminosos e forças patrocinadas pelo Estado – tem sido caracteristicamente humana, não um artefato estéril e desapaixonado de um futuro desconhecido. Aqui em ordem cronológica estão as violações de dados e ataques digitais que ajudaram a moldar a década. Dê um passeio cheio de ansiedade pela estrada da memória – e se cuide lá fora.

Stuxnet

O Stuxnet foi o primeiro malware a causar danos físicos a equipamentos, cruzando uma linha muito temida. Criado pelo governo dos Estados Unidos e Israel, o worm foi usado em 2010 para destruir centrífugas em uma instalação iraniana de enriquecimento nuclear. O Stuxnet interconectou quatro chamadas vulnerabilidades de dia zero (zero-day exploits) juntas para primeiro atingir o Microsoft Windows e, em seguida, procurar um software de controle industrial chamado Siemens Step7 na rede comprometida. A partir daí, o Stuxnet manipulou os controladores lógicos programáveis que automatizam os processos industriais. Embora o Stuxnet tenha atingido o programa nuclear iraniano, ele também poderia ter sido usado em outros ambientes industriais.

Shamoon

Shamoon é um “limpador” para Windows que indexa e carrega os arquivos de um computador-alvo para o do atacante, depois limpa os dados e destrói o “registro mestre de inicialização” do computador-alvo, que o primeiro setor fundamental do disco rígido de um computador. O Shamoon pode se espalhar através de uma rede e foi famoso em um ataque destrutivo em agosto de 2012 contra a companhia de petróleo da Arábia Saudita Saudi Aramco. Basicamente destruiu 30.000 computadores. Alguns dias depois, Shamoon atingiu a empresa RasGas, do Catar.

O Shamoon foi desenvolvido por hackers iranianos apoiados pelo Estado, aparentemente inspirando-se em ferramentas ofensivas de hackers criadas pela Agência de Segurança Nacional (EUA), incluindo o Stuxnet e as ferramentas de espionagem Flame e Duqu. Uma versão evoluída do Shamoon ressurgiu em uma série de ataques durante 2017 e 2018. O worm é significativo por ser um dos primeiros usados em ataques de Estados nacionais que foram criados para destruição de dados e para tornar inoperantes os dispositivos infectados.

Sony Hack

Em 24 de novembro de 2014, um esqueleto vermelho apareceu nas telas dos computadores nas operações da Sony Pictures Entertainment nos Estados Unidos. Os hackers que se autodenominavam “Guardiões da Paz” haviam se infiltrado nas redes da empresa e alegavam ter roubado 100 terabytes de dados. Mais tarde, eles jogaram centenas de gigabytes, incluindo filmes inéditos da Sony, e-mails, e-mails internos, detalhes sobre remuneração de atores e informações sobre funcionários, como salários, avaliações de desempenho, dados médicos sensíveis e números de Seguro Social. Os atacantes causaram estragos nos sistemas da Sony, não apenas roubando dados, mas liberando um malware limpador para excluir arquivos e configurações, para que a Sony tivesse que reconstruir grandes partes de sua infraestrutura digital do zero. O hackeamento acabou sendo revelado como obra do governo norte-coreano, provavelmente em retaliação pelo lançamento de The Interview, uma comédia sobre o assassinato de Kim Jong-un.

Violação do Escritório de Gestão de Pessoas (EUA)

Uma das violações de dados mais insidiosas e importantes da década é a violação do Office of Personnel Management, que era realmente uma série de violações e infecções orquestradas pela China durante 2013 e 2014. O OPM é o departamento administrativo e de recursos humanos dos funcionários do governo dos EUA e armazena uma grande quantidade de dados muito confidenciais, porque gerencia liberações de segurança, realiza verificações de antecedentes e mantém registros de todos os funcionários federais anteriores e atuais. Para hackers que buscam informações sobre o governo federal dos EUA, esse é um tesouro inigualável.

Os hackers vinculados ao governo chinês entraram na rede da OPM duas vezes, primeiro roubando os projetos técnicos da rede em 2013 e iniciando um segundo ataque logo depois, no qual obtiveram o controle do servidor administrativo que gerenciava a autenticação para todos os outros logins do servidor. Em outras palavras, quando o OPM percebeu o que de fato havia acontecido e agiu para remover os invasores em 2015, os hackers já haviam conseguido roubar dezenas de milhões de registros detalhados sobre todos os aspectos da vida dos funcionários federais, incluindo 21,5 milhões de números do Seguro Social e 5,6 milhões de registros de impressões digitais. Em alguns casos, as vítimas não eram nem funcionários federais, mas estavam simplesmente ligadas de alguma forma a funcionários do governo que haviam sido submetidos a verificações de antecedentes. (Essas verificações incluem todos os tipos de informações extremamente específicas, como mapas da família, amigos, associados e filhos de uma pessoa.)

Os dados roubados do OPM nunca circularam online ou apareceram no mercado negro, provavelmente porque foram roubados por seu valor de inteligência e não por seu valor criminal. Os relatórios indicaram que os operadores chineses podem ter usado as informações para complementar um banco de dados catalogando os cidadãos dos EUA e a atividade do governo.

Blecautes Ucranianos

Dois momentos cruciais da década ocorreram em dezembro de 2015 e 2016, quando a Rússia, já em guerra física com a Ucrânia, lançou dois ataques digitais contra a rede elétrica que causou dois apagões muito sérios. Ambos os ataques foram orquestrados pelo grupo de hackers do governo russo Sandworm, conhecido por suas campanhas agressivas. O primeiro apagão foi causado por um conjunto de malware, incluindo uma ferramenta chamada BlackEnergy, que permitia aos hackers roubar credenciais e obter acesso para desativar manualmente os disjuntores. O segundo visava uma única estação de transmissão com um malware mais evoluído, conhecido como Crash Override ou Industroyer. Nesse ataque, os hackers poderiam manipular diretamente os sistemas que controlam os fluxos de energia, em vez de ter que usar artimanhas como no primeiro ataque à rede. O segundo ataque que causou blecaute foi planejado para destruir fisicamente equipamentos, resultando em danos duradouros se tivesse ocorrido conforme planejado. Um pequeno erro técnico, no entanto, resultou que o apagão durou apenas cerca de uma hora.

Embora os blecautes induzidos por hackers tenham sido um pesadelos imaginado há décadas, o Sandworm foi o primeiro grupo de hackers a realmente lançar ataques de rede disruptivos no mundo físico. Ao fazer isso, a Rússia também demonstrou que não estava apenas travando uma guerra cinética com a Ucrânia, mas uma guerra cibernética avançada.

The backbone of America — banks, oil and gas suppliers, the energy grid — is under constant attack by hackers. But the biggest cyberattacks, the ones that can blow up chemical tanks and burst dams, are kept secret by a law that shields U.S. corporations.

Shadow Brokers

Um grupo que se autodenominava Shadow Brokers apareceu pela primeira vez em agosto de 2016, publicando uma amostra de ferramentas de espionagem que alegou terem sido roubadas do Equation Group da Agência de Segurança Nacional (EUA), um grupo de elite de hackers focado em espionagem internacional. Mas em abril de 2017, o grupo lançou outro conjunto mais extenso de ferramentas da NSA que incluíam uma exploração do Microsoft Windows conhecida como “EternalBlue”.

Essa ferramenta tira proveito de uma vulnerabilidade no protocolo de compartilhamento de arquivos Server Message Block da Microsoft, presente em praticamente todos os sistemas operacionais Windows da época. A Microsoft lançou um patch para a falha, a pedido da NSA, apenas algumas semanas antes dos Shadow Brokers tornarem o EternalBlue público, mas os usuários do Windows – incluindo grandes instituições – demoraram a adotá-lo. Isso abriu as portas para um ataque de hackers relacionados ao Eternal Blue em todo o mundo.

O primeiro exemplo de destaque é o ransomware malformado conhecido como WannaCry, que usou o EternalBlue para varrer o mundo em 12 de maio de 2017. Construído por hackers norte-coreanos patrocinados pelo Estado aparentemente para gerar receita e causar algum caos, o ransomware atingiu serviços públicos e grandes empresas, principalmente na Europa e no Reino Unido. Por exemplo, o WannaCry atrapalhou hospitais e instalações do Serviço Nacional de Saúde no Reino Unido, impactando as salas de emergência, procedimentos médicos e atendimento geral ao paciente.

Os pesquisadores suspeitam que o WannaCry foi um tipo de experimento que escapou do laboratório – um malware que os hackers norte-coreanos ainda estavam desenvolvendo quando perderam o controle. Isso ocorre porque o ransomware possui grandes falhas de design, incluindo um mecanismo que especialistas em segurança foram capazes de usar como um interruptor para impedir a disseminação do WannaCry. O ransomware gerou apenas cerca de 52 bitcoins para os norte-coreanos, que valiam menos de US $ 100.000 na época e cerca de US $ 369.000 atualmente.

O vazamento do Eternal Blue e sua subsequente exploração em massa alimentaram o debate sobre se as agências de inteligência e as forças armadas dos EUA deveriam acumular conhecimento das principais vulnerabilidades de software e como explorá-las, para fins de espionagem e ataques ofensivos. Atualmente, a comunidade de inteligência usa uma estrutura chamada “Processo de Equidades de vulnerabilidade” (Vulnerability Equities Process) para avaliar quais bugs são de importância suficientemente grande para a segurança nacional e devem permanecer secretos e sem patches. Mas alguns argumentam que esse mecanismo de supervisão não é adequado, dado o péssimo histórico do governo dos EUA em garantir a segurança dessas ferramentas e a ameaça de outro incidente do tipo WannaCry.

Hackeamento das eleições presidenciais de 2016 nos EUA

Os hackers russos não passaram a última década apenas aterrorizando a Ucrânia. Eles também lançaram uma série de campanhas de desinformação e vazamento de dados desestabilizadores contra os Estados Unidos durante a temporada de campanha das eleições presidenciais de 2016. Dois grupos de hackers russos conhecidos como APT 28 ou Fancy Bear e APT 29 ou Cozy Bear realizaram campanhas maciças de desinformação de mídia social, usaram ataques de phishing por email para violar o Comitê Nacional Democrata e vazaram publicamente a correspondência embaraçosa da organização e se infiltraram na conta de email de John Podesta, chefe da campanha de Hillary Clinton. Operadores russos vazaram os dados roubados através da plataforma anônima WikiLeaks, alimentando controvérsia no momento em que os eleitores dos Estados Unidos formavam suas opiniões sobre em quem poderiam votar no dia da eleição. Os hackers russos também se intrometeram nas eleições presidenciais francesas em 2017.

A Rússia está longe de ser o único país a tentar promover seus interesses por meio de interferência eleitoral. Mas o país foi talvez o mais descarado de todos os tempos e escolheu um alvo de alto nível, concentrando-se nos EUA em 2016.

NotPetya

Em 27 de junho de 2017, uma onda do que parecia ser um ransomware se espalhou pelo mundo. Porém, o NotPetya, como seria chamado, não foi um ataque de ransomware – foi um malware destrutivo criado para bloquear computadores, devastar redes e criar o caos. O NotPetya foi desenvolvido pelo grupo russo de hackers Sandworm, aparentemente para atingir a Ucrânia. Os danos na Ucrânia foram extensos, mas o malware se mostrou muito virulento e se espalhou pelo mundo, atingindo empresas multinacionais, inclusive na Rússia. No total, o governo dos EUA estima que o NotPetya resultou em pelo menos US $ 10 bilhões em danos, interrompendo empresas farmacêuticas, transporte marítimo, empresas de energia, aeroportos, transporte público e até serviços médicos na Ucrânia e em todo o mundo. Foi o ataque cibernético mais caro de todos os tempos.

NotPetya foi o que pode ser chamado de ataque à cadeia de suprimentos. Os hackers espalharam o malware pelo mundo comprometendo as atualizações do sistema do onipresente software de contabilidade ucraniano MeDoc. Quando usuários regulares do MeDoc executavam uma atualização de software, eles inadvertidamente baixavam o NotPetya também. Além de tornar visível o perigo crítico de danos colaterais na guerra cibernética, o NotPetya também ressaltou a ameaça real de ataques à cadeia de suprimentos, especialmente em software.

Equifax

Embora tenha chegado relativamente tarde na década, a enorme violação de 2017 da empresa de monitoramento de crédito Equifax é a mãe de todas as violações de dados corporativos, tanto por sua escala e gravidade, quanto porque a Equifax lidou com a situação tão mal. O incidente expôs as informações pessoais de 147,9 milhões de pessoas – os dados incluíam datas de nascimento, endereços, alguns números de carteira de motorista, cerca de 209.000 números de cartão de crédito e números de Seguro Social – o que significa que quase metade da população dos EUA teve potencialmente exposto seu identificador secreto crucial.

A Equifax divulgou a violação no início de setembro de 2017 e, ao fazê-lo, desencadeou outra série de eventos infelizes. O site informativo que a empresa montou para as vítimas era vulnerável a ataques e solicitou que os últimos seis dígitos dos números de previdência social das pessoas para verificar se seus dados foram afetados pela violação. Isso significava que a Equifax estava pedindo aos estadunidenses que confiassem neles com seus dados novamente. A Equifax também transformou sua página de resposta a violações em um site independente, em vez de fazer parte de seu domínio corporativo principal – uma decisão que convidava a cosntrução de sites de impostores e tentativas agressivas de phishing. A conta oficial do Equifax no Twitter twittou por engano um link de phishing em particular quatro vezes. Quatro vezes! Felizmente, o link era uma página de pesquisa de prova de conceito, não um site malicioso real. Desde então, houve inúmeras indicações de que a Equifax possuía uma cultura de segurança perigosamente negligente e falta de procedimentos resposta preparados.

Embora tenha sido notavelmente grave, a violação do Equifax é apenas uma de uma longa linha de violações problemáticas de dados corporativos que assolaram os últimos 10 anos. A violação da Target no final de 2013 que comprometia os dados de 40 milhões de clientes agora parece um ponto de virada na conscientização geral sobre dados em risco. Logo depois, as empresas Neiman Marcus e Michaels anunciaram grandes violações de dados de clientes em 2014. Em setembro do mesmo ano, a Home Depot também foi violada, expondo informações de aproximadamente 56 milhões de cartões de crédito e débito de clientes.

E, em julho de 2015, os hackers violaram o Ashley Madison, um site que existe especificamente para facilitar casos e encontros extraconjugais. Em um mês, os hackers haviam postado quase 10 gigabytes de dados roubados no site, que continham detalhes do cartão de pagamento e da conta de aproximadamente 32 milhões de usuários da Ashley Madison. Essa informação incluía detalhes sobre preferências e orientações sexuais. Para os usuários que digitaram seu nome real – ou um pseudônimo reconhecível – no site, o conjunto de dados simplesmente revelou o fato de que eles tinham uma conta na Ashley Madison, além de vincular informações pessoais a eles. Embora a violação tenha gerado muitas manchetes durante o verão de 2015, também teve grandes consequências para os usuários do site.

Aadhaar

O banco de dados de identificação governamental Aadhaar armazena informações pessoais, biometria e um número de identificação de 12 dígitos para mais de 1,1 bilhão de cidadãos indianos. O Aadhaar é usado em tudo, desde a abertura de uma conta bancária até a inscrição em serviços públicos ou para cadastrar uma conta de telefone celular. E as empresas de tecnologia podem se conectar à Aadhaar para rastrear os clientes. Todas essas interconexões, no entanto, levaram a numerosas exposições importantes aos dados do Aadhaar quando terceiros, ou o próprio governo indiano, armazenam as informações de maneira inadequada. Como resultado, os pesquisadores estimam que todos os 1,1 bilhão de números de Aadhaar e grande parte dos dados associados foram violados apenas durante o ano de 2018. Há um mercado negro em expansão para esses dados.

Pouquíssimas instituições têm dados de um bilhão de pessoas a perder. Por outro lado, há o Yahoo, que sofreu duas violações de dados separadas. Uma delas, que ocorreu no final de 2014 e foi divulgada em setembro de 2016, expôs 500 milhões de contas do Yahoo. Outra, que ocorreu em agosto de 2013 e foi originalmente divulgada em dezembro de 2016, revelou em outubro de 2017 que expôs todas as contas do Yahoo existentes em 2013, totalizando três bilhões.

Violações de dados como OPM e Equifax são complicadas, porque aparentemente são o resultado da espionagem do Estado nacional e os dados nunca vazam publicamente ou mesmo em fóruns criminais. Isso significa que é difícil avaliar o risco diário das pessoas comuns representadas por essas violações. Mas com exposições como Aadhaar, Yahoo, Target e muitas outras em que os dados vazam publicamente e começam a circular na dark web, há uma conexão muito clara com fraudes generalizadas, comprometimentos de contas digitais e os golpes que se seguem.

Bloqueio de IP, adeus federação do email

Há uns poucos dias, eu estava conversando com um amigo sobre email. Nós dois usamos email para nos comunicarmos tanto no trabalho quanto com nossas amizades todos os dias. No meu caso, os caras do trabalho preferem que eu mande tudo pelo zap (se fosse possível, eles me pediriam até os relatórios via áudio!). É um pesadelo em termos de organização: tanto as buscas quanto o armazenamento ficam prejudicados naquela mistureba de áudios, mensagens confusas, e cartões de natal e páscoa. Sem falar nas questões de criptografia, valores políticos do provedor, coleta de metadados, propaganda, privacidade, relações com o Estado, etc.

Essa conversa que tivemos foi motivada pelo bloqueio do IP do disroot.org que a Microsoft (outlook, hotmail, live, etc) tinha implementado. A galera do disroot pediu mais informações e a MS disse que não podia dizer a razão. Nesse momento, finalmente descobri porque os emails que eu enviava pelo disroot eram recusado pelo hotmail. E além disso, também havia tido problemas com arquivos que eu compartilhava através da nuvem do disroot. O cara na outra ponta recebia um aviso ao tentar baixar o arquivo: “o site a seguir contém apps prejudiciais”. E ele me disse com ares de refém: “O windows defender não me deixa abrir!”.

Pra vocês verem que o email tá vivinho da silva e sendo disputado! Às vezes, me sinto um velho chato falando dos usos e situações propícias ao email (obviamente ele não serve pra qualquer coisa). Mas não é coisa de velho, não. Inclusive esse meu amigo me surpreendeu ao dizer: “contratei um provedor para garantir que minha comunicação tenha as características que eu desejo”. Já pensou? Em pleno século XXI tem gente que paga pra ter uma conta de email? Pois é, se temos a mínima noção dos gastos envolvidos para o funcionamento da internet, então é de se estranhar que exista alguma empresa fornecendo serviço gratuito. Essa é um discussão difícil, raramente pautada; seja porque nós estamos aqui nessa américa latina com os pilas contados no bolso, seja porque a gente se acostumou, foi educado/formatado, com uma internet grátis. Mas eu também não vou puxar a conversa agora (ela parece mais complexa do que “você é a mercadoria”).

Voltando ao tema da postagem, o caráter federado do protocolo de comunicação do email, que permite que diferentes provedores consigam conversar entre si (como as empresas de telefonia, mas não como o zap, que só fala com zap, ou o signal, que só fala com o signal), está sendo minado com esse tipo de bloqueio. As pessoas que prestam atenção na hora de escolher um provedor de email hoje têm buscado alternativas fora das grandeteqs, como protonmail, tutanota, riseup, por exemplo. Porém, se as grandonas bloquearem as pequenas (mesmo que devagarzinho, sutilmente, sem dizer por quê), acabou-se a federação e segue-se o processo há décadas iniciado de monopólio dos serviços, de jardins murados, de fazendas de metadados.

Nas semanas seguintes pretendo falar mais sobre email: vantagens da formatação texto simples sobre HTML e o Deltachat.

Criptoglitch – João Pessoa, 11-19 nov

https://bit.ly/Criptoglitch

A segunda edição da Criptofesta João pessoa atende por Criptoglitch e será realizada inteiramente de forma online. Glitch remete às falhas de funcionamento, no entanto, o que seria um glitch em um sistema todo corrompido? Identificar erros pode ser um convite para uma mudança.

Estamos com chamada aberta para atividades até o dia 21 de novembro de 2020.

https://bit.ly/Criptoglitch

Serão selecionadas até duas mesas redondas, duas oficinas e duas intervenções artísticas. Aceitamos propostas que abordem: modulação algorítmica e direitos humanos, cuidados integrais do corpo (digital, físico, psicossocial); anti vigilância; corpo, gênero, raça, favela, ativismo, quilombos, periferia e tecnologias.

As oficinas e mesas selecionadas serão realizadas entre os dias 14 e 15 de dezembro; já as intervenções serão entre os dias 11, 14, 15 e 18 de dezembro.

Haverá uma ajuda de custo de R$250 para cada oficina e intervenção artística selecionadas.

A programação completa será divulgada no dia 26 de novembro de 2020.

Como me conecto diretamente com um contato num chat p2p?

Um chat do tipo par a par (peer to peer, P2P) é aquele que conecta diretamente as pessoas sem um servidor intermediando a comunicação. Essa forma de conexão visa, entre outras coisas, aumentar o anonimato e burlar a censura.

Apenas lembrando, quando a gente se comunica  pela internet, existem trocentos pontos intermediários que registram e podem armazenar o que estamos fazendo (nossa localização,  tipo de comunicação, dia e hora, tamanho das informações transferidas, versão do aplicativo, modelo do dispositivo, etc.). Assim, quando conseguimos tirar um intermediário, diminuímos nossos rastros e a possibilidade de sermos identificados por terceiros (se esse é o intuito, claro. Se você usa um meio de comunicação que exige sua identificação prévia, como telefonia celular, tipo o zap, telegram ou signal (por causa do registro do chip), aí não tem jeito de trafegar sem ser reconhecido). Porém, há uma pegadinha aqui: como vou me conectar diretamente com minha amiga, essa pessoa precisa saber quem eu sou para estabelecer a conexão e poder responder (diferente da televisão ou rádio, que a estação emissora não precisa saber que recebe, pois não há resposta). Uma ligação direta só acontece se há certeza que ambas as partes se reconhecem. Ou seja, o tipo de anonimato que estou falando aqui se refere a passar incógnito por intermediários e sem usar um servidor central que gerencie as conversas. Porém, você não é anônima para a pessoa com quem está falando.

Mas, então, como que as pessoas se conectam? Para responder com um exemplo, vou usar o protocolo Tox. Outros protocolos certamente farão diferente, mas descreverei esse só para termos uma ideia.

Primeiro de tudo, quando uma pessoa comum se conecta na internet ela recebe um endereço de IP novo. Isso acontece toda vez. Se os endereços fossem fixos, como é o da nossa casa, aí não teria grilo: tu mesmo, sabendo onde a pessoa está, irias até lá e deixarias a carta, o smile, a foto, sem precisar da empresa do correio e de carteiro (intermediário). Mas na internet não é assim. Toda vez que a gente se conecta, ganhamos do sistema um endereço novo, um IP diferente para cada conexão.

Agora, se o Tox é um chat que me liga diretamente com meus contatos, sem um servidor intermediário (como zap,  email, telegram, facebook, signal, wire, etc. que têm um servidor mediando tudo que fazemos), como ele sabe onde estamos (qual nosso IP) para nos botar em contato direto? Como o meu aplicativo (que sabe onde estou) encontra o endereço de IP de um contato, sendo que ele muda de IP toda vez que conecta?

Aqui tem um pepino técnico importante. Alguém tem que conhecer os dois endereços para então colocá-los em contato. Quem está intermediando inicialmente nossa conversa, afinal?

Comecei a entender um pouquinho como o protocolo Tox funciona olhando o que o cliente (qTox) me dizia quando rodava-o pelo terminal do linux. Selecionei a parte que nos interessa aqui:

[09:23:19.947 UTC] core/core.cpp:357 : Debug: "Connecting to 144.217.86.39:33445 (velusip)"
[09:23:19.949 UTC] core/core.cpp:357 : Debug: "Connecting to 2001:1470:fbfe::109:33445 (fluke571)"
[09:23:19.949 UTC] core/core.cpp:366 : Debug: "Error bootstrapping from fluke571"
[09:23:19.950 UTC] core/core.cpp:370 : Debug: "Error adding TCP relay from fluke571"
[09:23:24.448 UTC] core/core.cpp:357 : Debug: "Connecting to d4rk4.ru:1813 (D4rk4)"
[09:23:25.616 UTC] core/core.cpp:357 : Debug: "Connecting to tmux.ru:33445 (nrn)"
[09:23:28.499 UTC] core/core.cpp:326 : Debug: Connected to the DHT
...

Fiquei intrigado ao ver que o programa estava se conectando a pessoas (IPs) que eu não tinha a menor ideia de quem eram: velusip, fluke571, D4rk4, nrn. Esses não eram meus contatos.

Toda vez que eu rodava o Tox, ele tentava se conectar a IPs que eu não conhecia. Ao observar as tentativas de conexão toda vez que abria o programa, percebi que esses IPs se repetiam. Até que resolvi ir atrás da informação que está na última linha que colei acima: “connected to the DHT“.

Agora, alguns termos difíceis. Segundo a Wikipedia, DHT significa Distributed Hash Table, ou Tabela de Hash Distribuída, que é um sistema distribuído e descentralizado para armazenar e buscar informação (chave, valor) de forma resumida. Os nós (IPs) que se conectem nesse sistema podem recuperar rapidamente o valor associado a cada chave.

Também encontrei a explicação de como o protocolo Tox usa DHTs para encontrar os meus contatos:

A DHT é um agrupamento auto-organizado de todos os usuários da rede Tox. Ela serve para encontrar o IP e a porta de cada pessoa e estabelecer uma rota direta via UDP.

Cada pessoa na DHT possui uma chave pública temporária que lhe serve de endereço. Esse endereço é efêmero e renovado a cada vez que o tox é fechado e reaberto.

Tá, o que tudo isso significa? Cada vez que abro um cliente Tox (como o qTox ou antox), me conecto em alguns endereços de IP fixos e com alta disponibilidade, chamados Bootstrap Nodes. Quando contei, eram 24 nós-IPs nessa lista (e são de vários países diferentes). Provavelmente, esses são IPs de pessoas de confiança da rede Tox. Não encontrei informações sobre quem são essas pessoas e como elas são escolhidas para serem um bootstrap node.

Então, primeiro me conecto a entre 3 a 6 nós de bootstrap (segundo a distância). Com cada um desses nós, eu troco chaves temporárias. Quando meu contato estiver online, ele fará a mesma coisa. Quando nós dois estivermos conectados ao mesmo nós, então, finalmente, estabelecemos uma conexão direta, deixando de passar pelos nós fixos de bootstrap. Só a partir desse momento é que começamos a trocar mensagens e a conexão pode ser chamada de par a par (peer to peer).

Se não me confundi em algum momento, resumidamente é assim que o protocolo Tox faz com que eu consiga uma conexão direta com um contato.

Se você sabe como outros protocolos par a par conseguem encontrar as pessoas certas (por exemplo, o Briar ou Bittorrent), escreva um artiguinho assim pra gente publicar aqui 🙂

Quando o Signal não dá conta

Apesar deste texto ter como foco o Signal, por ser o mensageiro preferido por muitas pessoas anarquistas nos EUA e na Europa, que é a “audiência” original do texto, gostaríamos de ressaltar que a crítica levantada aqui serve, de modo geral, para qualquer aplicativo de mensagem instantânea (MI), como zap, telegram, wire, etc. Em outra postagem, destacou-se problemas comuns de organização com o uso do zap. De novo, achamos que aqueles problemas não se aplicam apenas ao zap.

Dá pra destacar dois pontos aqui: 1) entenda primeiro suas necessidades e depois busque uma forma de comunicação que melhor dê conta delas; e 2) soluções técnicas raramente são soluções para problemas sociais. Dedique tempo para aprender a se comunicar e a decidir em grupo. Sem isso, de pouca serventia serão as (pequenas) escolhas políticas embutidas no projeto dos aplicativos.

(texto do blog SaltaMontes.noblogs.org)


Tradução do texto Signal Fails, escrito por Northshore Counter Info, em junho de 2019.


Discussão crítica sobre o uso do aplicativo Signal em círculos autônomos e anarquistas.

O Signal é um serviço de mensagens criptografadas que existe em diferentes formas há cerca de 10 anos. Desde então, tenho visto o software ser amplamente adotado por redes anarquistas no Canadá e nos Estados Unidos. Cada vez mais, para melhor e pior, nossas conversas interpessoais e em grupo passaram para a plataforma do Signal, na medida em que se tornou a maneira dominante pela qual anarquistas se comunicam neste continente, com muito pouco debate público sobre as implicações.

O Signal é apenas um aplicativo para espertofone. A mudança real de paradigma que está acontecendo é para uma vida cada vez mais mediada por telas de espertofones e mídias sociais. Levou apenas alguns anos para que os espertofones se tornassem obrigatórios para quem quer amigos ou precisa de trabalho, fora alguns bolsos perdidos. Até recentemente, a subcultura anarquista era um desses bolsos, onde você poderia se recusar a carregar um espertofone e ainda existir socialmente. Agora tenho menos certeza, e isso é deprimente. Então, vou teimosamente insistir ao longo deste texto que não há substituto para as relações face a face do mundo real, com toda a riqueza e complexidade da linguagem corporal, emoção e contexto físico, e elas continuam a ser a maneira mais segura de ter uma conversa privada. Então, por favor, vamos deixar nossos telefones em casa, nos encontrar em uma rua ou floresta, conspirar juntos, fazer música, construir alguma merda, quebrar alguma merda e nutrir a vida off-line juntos. Acho que isso é muito mais importante do que usar o Signal corretamente.

A ideia desse zine surgiu há um ano, quando eu estava visitando amigos em outra cidade e brincando sobre como as conversas do Signal lá onde moro viraram grandes tretas. Os padrões foram imediatamente reconhecidos e passei a perceber que essa conversa estava acontecendo em muitos lugares. Quando comecei a perguntar, todos tinham reclamações e opiniões, mas muito poucas práticas compartilhadas haviam surgido. Então, fiz uma lista de perguntas e botei-as para circular. Fiquei agradavelmente surpreso ao receber mais de uma dúzia de respostas detalhadas, que, combinadas com várias conversas informais, são a base para a maior parte deste texto (1).

Não sou especialista – não estudei criptografia e não sei programar. Sou um anarquista com interesse em segurança holística e um cético com relação à tecnologia. Meu objetivo com este artigo é refletir sobre como o Signal se tornou tão central na comunicação anarquista em nosso contexto, avaliar as implicações em nossa segurança coletiva e organização social e lançar algumas propostas preliminares para o desenvolvimento de práticas compartilhadas.

Uma breve história do Signal

Há 25 anos, aqueles entre nós que eram otimistas com a tecnologia viram um enorme potencial na Internet que surgia: ela seria uma ferramenta libertadora. Lembra daquele velho segmento da CBC que elogiou “uma rede de computadores chamada Internet” como “anarquia modulada?” E embora ainda existam formas poderosas de se comunicar, coordenar e disseminar ideias online com segurança, fica claro que as entidades estatais e corporativas estão gradualmente capturando cada vez mais o espaço online e usando-o para nos sujeitar a formas cada vez mais intensas de vigilância e controle social. (2)

A internet sempre foi uma corrida armamentista. Em 1991, o criptógrafo, libertário e ativista da paz (3) Phil Zimmerman criou o Pretty Good Privacy (PGP), um aplicativo de código aberto para criptografia de arquivos e criptografia de ponta a ponta para e-mail. Estou evitando detalhes técnicos, mas basicamente a importância de ser de ponta a ponta é que você pode se comunicar de forma segura diretamente com outra pessoa, e seu serviço de e-mail não pode ver a mensagem, seja o Google ou o Riseup. Até hoje, até onde sabemos, a criptografia PGP nunca foi quebrada (4).

Durante anos, técnicos e nerds de segurança em certos círculos – anarquistas, jornalistas, criminosos, etc. – tentaram espalhar o PGP para suas redes como uma espécie de infraestrutura de comunicações seguras, com algum sucesso. Como em tudo, havia limitações. Minha maior preocupação de segurança (5) com o PGP é a falta de Sigilo Direto, o que significa que, se uma chave de criptografia privada for comprometida, todos os e-mails enviados com essa chave poderão ser descriptografados por um invasor. Esta é uma preocupação real, dado que a NSA quase certamente está armazenando todos os seus e-mails criptografados em algum lugar, e um dia computadores quânticos poderão ser capazes de quebrar o PGP. Não me pergunte como funcionam os computadores quânticos – até onde sei, é pura mágica do mal.

O grande problema social com o PGP, um dos que mais influenciaram o projeto Signal, é o fato de que nunca foi amplamente adotado fora de um pequeno nicho. Na minha experiência, foi até difícil trazer anarquistas para o PGP e fazê-los usá-lo apropriadamente. Houve oficinas, muitas pessoas foram instruídas, mas assim que um computador caiu ou uma senha foi perdida, tudo voltava à estaca zero. Simplesmente não colou.

Por volta de 2010, os espertofones começaram a se popularizar e tudo mudou. A onipresença das mídias sociais, as mensagens instantâneas constantes e a capacidade das empresas de telecomunicações (e, portanto, do governo) de rastrear todos os movimentos dos usuários (6) transformaram completamente o modelo de ameaças. Todo o trabalho que as pessoas dedicam à segurança de computadores teve que voltar décadas para trás: os espertofones contam com uma arquitetura completamente diferente dos PCs, resultando em muito menos controle do usuário, e o advento de permissões de aplicativos completamente livres tornou quase ridícula a ideia de privacidade dos espertofones.

Este é o contexto em que o Signal apareceu. O anarquista ‘cypherpunk’ Moxie Marlinspike começou a trabalhar num software para levar criptografia de ponta a ponta para smartphones, com a propriedade de Segredo Futuro, trabalhando na ideia de que a vigilância em massa deveria ser combatida com criptografia em massa. O signal foi projetado para ser utilizável, bonito e seguro. Moxie concordou em juntar-se aos gigantes da tecnologia WhatsApp, Facebook, Google e Skype para implementar o protocolo de criptografia do Signal em suas plataformas também.

“É uma grande vitória para nós quando um bilhão de pessoas estão usando o WhatsApp e nem sequer sabem que ele está criptografado”- Moxie Marlinspike

Compreensivelmente, os anarquistas são mais propensos a confiar suas comunicações ao Signal – uma fundação sem fins lucrativos dirigida por um anarquista – do que a confiar numa grande empresa de tecnologia, cujo principal modelo de negócio é colher e revender dados de usuários. E o Signal tem algumas vantagens sobre essas outras plataformas: é de código aberto (e, portanto, sujeito a revisão por pares), criptografa a maioria dos metadados, armazena o mínimo possível de dados do usuário e oferece alguns recursos úteis, como o desaparecimento de mensagens e a verificação do número de segurança para proteger contra intercepções.

O Signal conquistou elogios quase universais de especialistas em segurança, incluindo endossos do delator da NSA, Edward Snowden, e as melhores pontuações da respeitada Electronic Frontier Foundation. Em 2014, documentos vazados da NSA descreveram o Signal como uma “grande ameaça” à sua missão (de saber tudo sobre todos). Pessoalmente, confio na criptografia.

Mas o Signal realmente protege apenas uma coisa, e essa coisa é a sua comunicação enquanto viaja entre o seu dispositivo e outro dispositivo. Isso é ótimo, mas é apenas uma parte de uma estratégia de segurança. É por isso que é importante, quando falamos de segurança, começar com um Modelo de Ameaças. As primeiras perguntas para qualquer estratégia de segurança são quem é o seu adversário esperado, o que ele está tentando capturar e como é provável que o faça. A ideia básica é que as coisas e práticas são apenas seguras ou inseguras em relação ao tipo de ataque que você está esperando se defender. Por exemplo, você pode ter seus dados fechados com criptografia sólida e a melhor senha, mas se o invasor estiver disposto a torturá-lo até que você entregue os dados, tudo aquilo realmente não importa.

Para o propósito deste texto, eu proporia um modelo de ameaças de trabalho que se preocupa principalmente com dois tipos de adversários. O primeiro é agências de inteligência globais ou hackers poderosos que se envolvem em vigilância em massa e interceptam comunicações. A segunda são as agências policiais, operando em território controlado pelo governo canadense ou estadunidense, engajados numa vigilância direcionada a anarquistas. Para a polícia, as técnicas básicas de investigação incluem monitoramento de listas de e-mail e mídias sociais, envio de policiais à paisana (p2) para eventos e informantes casuais. Às vezes, quando eles têm mais recursos, ou nossas redes se tornam uma prioridade maior, eles recorrem a técnicas mais avançadas, incluindo infiltração de longo prazo, vigilância física frequente ou contínua (incluindo tentativas de capturar senhas), escuta de dispositivos, interceptação de comunicações e invasões domésticas, onde os dispositivos são apreendidos e submetidos a análise forense.

Devo salientar que muitas jurisdições europeias estão implementando leis de quebra de sigilo importantes que obrigam legalmente os indivíduos a dar suas senhas às autoridades sob certas condições ou ir pra cadeia (7). Talvez seja apenas uma questão de tempo, mas, por enquanto, no Canadá e nos EUA, não somos legalmente obrigados a divulgar senhas para as autoridades, com a notável exceção de quando estamos atravessando a fronteira (8).

Se o seu dispositivo estiver comprometido com um gravador de digitação (keylogger) ou outro software malicioso, não importa quão seguras sejam as suas comunicações. Se você está saindo com um informante ou policial, não importa se você tira a bateria do telefone e fala em um parque. Cultura de segurança e segurança de dispositivos são dois conceitos não cobertos por este texto mas que devem ser considerados para nos proteger contra essas ameaças muito reais. Incluí algumas sugestões na seção Leitura Adicional.

Também vale mencionar que o Signal não foi projetado para anonimato. Sua conta do Signal é registrada com um número de telefone, portanto, a menos que você se registre usando um telefone descartável comprado em dinheiro ou um número descartável on-line, você não está anônimo. Se você perder o controle do número de telefone usado para registrar sua conta, outra pessoa poderá roubar sua conta. É por isso que é muito importante, se você usar um número anônimo para registrar sua conta, ativar o recurso “bloqueio de registro”.

Principalmente por razões de segurança, o Signal se tornou o meio de comunicação padrão nos círculos anarquistas nos últimos 4 anos, ofuscando todo o resto. Mas assim como “o meio é a mensagem”, o Signal está tendo efeitos profundos sobre como os anarquistas se relacionam e se organizam, que muitas vezes são negligenciados.

O lado social do Signal

“O Signal é útil na medida em que substitui formas menos seguras de comunicação eletrônica, mas se torna prejudicial… quando substitui a comunicação face a face”. Participante da minha pesquisa

A maioria das implicações sociais do Signal não tem a ver especificamente com o aplicativo. São as implicações de mover cada vez mais nossas comunicações, expressão pessoal, esforços de organização e tudo o mais para plataformas virtuais e mediá-las com telas. Mas algo que me ocorreu quando comecei a analisar as respostas aos questionários que enviei é que, antes do Signal, conheci várias pessoas que rejeitaram os espertofones por razões de segurança e sociais. Quando o Signal surgiu com respostas para a maioria das preocupações de segurança, a posição de recusa foi significativamente corroída. Hoje, a maioria das pessoas que querem estar fora tem espertofones, seja porque elas foram convencidas a usar o Signal ou ele se tornou efetivamente obrigatório se elas quisessem se continuar envolvidas. O Signal atuou como uma porta de entrada no mundo dos espertofones para alguns anarquistas.

Por outro lado, já que o Signal é uma redução de danos para aqueles de nós que já estamos presos em espertofones, isso é uma coisa boa. Fico feliz que as pessoas que estavam principalmente socializando e fazendo organização política em canais não criptografados como o Facebook, mudaram para o Signal. Na minha vida, o bate-papo em grupo substituiu a “pequena lista de e-mails” e é bastante útil para fazer planos com amigos ou compartilhar links. Nas respostas que coletei, os grupos de signal que eram mais valiosos para as pessoas, ou talvez os menos irritantes, eram os que eram pequenos, focados e pragmáticos. O Signal também pode ser uma ferramenta poderosa para divulgar de maneira rápida e segura um assunto urgente que requer uma resposta rápida. Se a organização baseada no Facebook levou muitos anarquistas a acreditar que a organização com qualquer elemento de surpresa é impossível, o Signal salvou parcialmente essa ideia, e sou grato por isso.

O Signal não dá conta

Inicialmente, imaginei este projeto como uma pequena série de vinhetas de quadrinhos que eu planejava chamar de “O Signal não Dá Conta”, vagamente inspirado no livro Come Hell ou High Water: Um Manual sobre Processo Coletivo cheio de percalços. Acontece que é difícil fazer desenhos interessantes representando as conversas do Signal e eu sou uma droga no desenho. Foi mal se eu prometi a alguém que, talvez na segunda edição … De qualquer forma, ainda quero incluir alguns desenhos de “O Signal não Dá Conta”, como uma maneira de tirar sarro de nós (e eu me incluo nisso!) E talvez para cutucar gentilmente todo mundo para que deixem de ser tão chatos.

  • Bond, James Bond: Ter Sinal não te torna intocável. Dê um pouco de criptografia a algumas pessoas e elas imediatamente aporrinharão toda a sua lista de contatos. Seu telefone ainda é um dispositivo de rastreamento e a confiança ainda é algo que se constroí. Converse com a sua galera sobre os tipos de coisas que vocês se sentem à vontade de falar ao telefone e o que não.
  • Silêncio não é consentimento: Você já foi numa reunião, fez planos com outros, montou um grupo de Signal para coordenar a logística, e então uma ou duas pessoas rapidamente mudaram os planos coletivos através de uma série rápida de mensagens que ninguém teve tempo de responder? Pois é, não é legal.
  • Uma reunião interminável é um inferno: um grupo de Signal não é uma reunião em andamento. Como já estou muito grudado ao meu telefone, não gosto quando um assunto está explodindo no chat do telefone e na real é apenas uma longa conversa entre duas pessoas ou o fluxo de consciência de alguém que não está relacionado com o propósito do grupo. Aprecio quando conversas têm começos e fins.
  • “Me dá mais!”: Esse é um que particularmente odeio. Provavelmente por causa do comportamento em redes sociais, alguns de nós estão acostumados a receber informações escolhidas para nós por uma plataforma. Porém, o Signal não é rede social, ainda bem! Então, fique ligado porque quando um grande grupo no Signal começa a se tornar um mural de notícias (feed), você está com problemas. Isso significa que, se você não estiver envolvido e prestando atenção, perderá todos os tipos de informações importantes, sejam eventos futuros, pessoas mudando seus pronomes ou conversas inflamadas que levam a rachas. As pessoas começam a esquecer que você existe e, eventualmente, você literalmente desaparece. Mate o FEED.
  • Incêndio num teatro lotado: também conhecido como o problema do botão de pânico. Você está de boa em um grande grupo do Signal com todos os seus pseudo amigos e todos os seus números de telefone reais, aí alguém é pego por tentar roubar numa loja ou algo assim, e ta-dan, o telefone daquela pessoa não é criptografado! Todo mundo se assusta e pula do navio, mas é tarde demais, porque se os policiais estão vistoriando esse telefone agora, eles podem ver todos que saíram e o mapeamento social está feito. Sinto muito.
  • História sem fim: Alguém criou um grupo no Signal para coordenar um evento específico que aconteceria uma vez só. Rolou, mas ninguém quer sair do grupo. De alguma forma, essa formação ad hoc muito específica é agora A ORGANIZAÇÃO PERMANENTE que se encarregou de decidir tudo sobre todas as coisas – indefinidamente.

Em busca de práticas compartilhadas

Se você achava que esse era um guia de boas práticas de Signal ou como se comportar num chat, foi mal ter te trazido tão longe sem ter deixado claro que não era. Esse texto é muito mais algo como “temos que falar sobre Signal”. Acredito de verdade no desenvolvimento de práticas compartilhadas dentro de contextos sociais específicos, e recomendo que comecemos tendo essa conversa de maneira explícita nas suas redes. Para isso, tenho algumas propostas.

Existem alguns obstáculos para a adoção de práticas compartilhadas. Algumas pessoas não possuem o Signal. Se isso acontece porque elas estão construindo relações sem espertofones, tudo que posso dizer é: elas têm o meu respeito. Se é porque elas passam o dia inteiro no Facebook, mas o Signal é “muito difícil”, aí é difícil de engolir. De resto, o Signal é fácil de instalar e de usar para qualquer pessoas que tenha um espertofone e uma conexão de internet.

Também discordo da perspectiva orwelliana que vê a criptografia como inútil: “A polícia já sabe de tudo!” É muito desempoderador pensar o governo dessa forma, e felizmente isso não é verdade – resistir ainda não é infrutífero. As agências de segurança possuem capacidade fodásticas, incluindo algumas que a gente nem sabe ainda. Mas existe ampla evidência de que a criptografia vem frustrado investigações policiais e é por isso que o governo está passando leis que impeçam o uso dessas ferramentas.

Talvez o maior obstáculo para as práticas compartilhadas é a falta generalizada de um “nós” – em que medida temos responsabilidades com alguém, e se temos, com quem? Como estamos construindo eticamente normas sociais compartilhadas? A maioria das anarquistas concordam que é errado dedurar, por exemplo, mas como podemos chegar lá? Eu realmente acredito que um tipo de individualismo liberal barato está influenciando o anarquismo e tornando a própria questão das “expectativas” quase um tabu de ser discutido. Mas esse seria um texto para outro dia.

Algumas propostas de Boas Práticas

  1. Mantenha as coisas no mundo real – como uma pessoa disse, “a comunicação não apenas compartilhar informação.” A comunicação cara a cara constrói relações completas, incluindo confiança, e continua sendo a forma mais seguras de se comunicar.
  2. Deixe os seus aparelhos em casa – quem sabe às vezes? Especialmente se você vai atravessar a fronteira, onde podem te forçar a descriptografar seus dados. Se você vai precisar de um telefone durante uma viagem, compre um telefone de viagem com suas amizades que não tenha nenhuma informação sensível nele, como sua lista de contatos.
  3. Torne seus aparelhos seguros – a maioria dos aparelhos (telefones e computadores) já possuem a opção de criptografia total de disco. A criptografia é tão boa quanto a sua senha e protege seus dados “em descanso”, ou seja, quando ele está desligado ou os dados não estão sendo usados por algum programa. O bloqueio de tela fornece alguma proteção enquanto seu aparelho está ligado, mas pode ser desviada por um atacante sofisticado. Alguns sistemas operacionais obrigam a usar a mesma senha para a criptografia de disco e para o bloqueio de tela, o que é uma pena pois não é prático escrever uma senha longa 25 vezes por dia (às vezes na presença do zóião ou de câmeras de vigilância).
  4. Desligue seus aparelhos – se você não está de olho neles, ou se for dormir, desligue-os. Compre um despertador barato. Caso sua casa seja invadida pela polícia durante a noite, você ficará bem feliz de ter feito isso. Quando o aparelho está desligado e criptografado com uma senha forte quando for apreendido, a polícia terá muito menos chances de “quebrá-lo”.  Caso você queira ir ainda mais longe, compre um bom cofre e tranque seus aparelhos lá dentro quando não estiver usando-os. Isso reduzirá o risco de que eles sejam adulterados fisicamente sem que você perceba.
  5. Estabeleça limites – temos noções diferentes sobre o que é seguro falar no telefone e o que não é. Discuta e crie limites coletivos sobre isso, e onde houver desacordo, respeite os limites das pessoas mesmo se você acha que está seguro.
  6. Combine um sistema de entrada no grupo – se você está discutindo assuntos sensíveis no coletivo, crie uma compreensão coletiva sobre o que seria um sistema de entrada de novas pessoas. Numa época em que anarquistas são acusados de conspiração, a falta de comunicação sobre isso pode mandar pessoas para a cadeia.
  7. Pergunte primeiro – se você vai adicionar alguém num assunto, fazendo assim com que os números de telefone do grupo todo sejam revelados, antes de tudo peça o consentimento do grupo.
  8. Minimize as tomadas de decisão online – considere deixar as decisões que não sejam de sim/não para reuniões presenciais, se possível. Pela minha experiência. o Signal empobrece os processos de tomada de decisão.
  9. Objetivo definido – idealmente, um grupo no Signal tem um objetivo específico. Cada pessoa que for adicionada a esse grupo deveria ser devidamente apresentada sobre esse objetivo. Caso ele seja alcançado, saia do grupo e delete-o.;
  10. Mensagens temporárias – isso é bem útil para manter a casa em ordem. Indo de 5 segundos a uma semana, as Mensagens Temporárias podem ser configuradas ao clicar no ícone do cronômetro na barra superior de uma conversa. Muitas pessoas usam o padrão de 1 semana para todas as suas mensagens, sejam as conversas sensíveis ou não. Escolha o tempo de expiração com base no seu modelo de ameaças. Isso também te protege, de alguma forma, caso a pessoa com que você está se comunicando esteja usando práticas de segurança fracas.
  11. Verifique os números de segurança – esta é a sua melhor proteção contra ataques de homem-no-meio. É bem simples e fácil de fazer isso ao vivo – abra sua conversa com a pessoa e vá até as Configurações da Conversa > Ver o número de segurança e escaneie o código QR ou compare os números. A maioria das pessoas que me responderam disseram que “eu deveria fazer isso, mas não faço”. Aproveita suas reuniões para verificar seus contatos. Tudo bem ser nerd!
  12. Habilite o Bloqueio de Registro -Habilite essa opção nas configurações de privacidade do Signal, para o caso de se alguém conseguir hackear seu número de telefone usado para registrar sua conta, ele ainda precisará obter seu PIN para roubar sua identidade. Isso é especialmente importante para contas do Signal anônimas registradas com números descartáveis, já que alguém certamente usará esse número novamente.
  13. Desativar a visualização de mensagens – Impeça que as mensagens apareçam na sua tela de bloqueio. No meu dispositivo, tive que definir isso nas configurações do dispositivo (não configurações do Signal) em Bloquear Preferências de tela> Ocultar conteúdo sensível.
  14. Excluir mensagens antigas – Seja ativando o número máximo mensagens por conversa ou excluindo manualmente as conversas concluídas, não guarde as mensagens que você não precisa mais.

Conclusão

Embarquei neste projeto para refletir e reunir feedbacks sobre o impacto que o Signal teve em redes anarquistas nos EUA e no Canadá, do ponto de vista da segurança e da organização social. Ao fazê-lo, acho que esbarrei com algumas frustrações comuns que as pessoas têm, especialmente com grandes grupos de Signal, e reuni algumas propostas para fazê-las circular. Continuo insistindo que os espertofones estão causando mais danos do que benefícios às nossas vidas e lutas. Digo isso porque elas são importantes para mim. Precisamos preservar e construir outras formas de nos organizar, especialmente offline, tanto para nossa qualidade de vida quanto para a segurança do movimento. Mesmo se continuarmos usando espertofones, é perigoso quando nossas comunicações são centralizadas. Se os servidores do Signal caírem hoje à noite, ou Riseup.net, ou Protonmail, imagine como isso seria devastador para nossas redes. Se anarquistas alguma vez representarem uma grande ameaça à ordem estabelecida, eles virão atrás de nós e de nossa infraestrutura sem piedade, inclusive suspendendo as ‘proteções legais’ das quais poderemos estar dependendo. Para melhor e pior, acredito que este cenário seja possível enquanto ainda estivermos vivos, e por isso devemos planejar pensando em resiliência.

A galera tech entre nós deve continuar a experimentar outros protocolos, softwares e sistemas operacionais, (9) compartilhando-os se forem úteis. Quem decidiu ficar fora deve continuar resistindo fora e encontrar maneiras de seguir lutando offline. Para o resto de nós, vamos minimizar o grau em que somos capturados pelos espertofones. Juntamente com a capacidade de lutar, devemos construir vidas que valham a pena, com uma qualidade de relacionamento que os potenciais amigos e co-conspiradores considerem irresistivelmente atraente. Pode ser a única esperança que temos.

Outras leituras

Este zine foi publicado em maio de 2019. O Signal atualiza periodicamente seus recursos. Para obter as informações mais atualizadas sobre assuntos técnicos, acesse signal.org, community.signalusers.org, e /r/signal no reddit.

Seu telefone é um policial
https://itsgoingdown.org/phone-cop-opsecinfosec-primer-dystopian-present/

Escolhendo a ferramenta apropriada para a tarefa
https://crimethinc.com/2017/03/21/choosing-the-proper-tool-for-the-task-assessing-your-encryption-options

Guias de ferramentas da EFF para autodefesa de vigilância (incluindo Signal)
https://ssd.eff.org/en/module-categories/tool-guides

Para uma cultura de segurança coletiva
https://crimethinc.com/2009/06/25/towards-a-collective-security-culture

Guia de segurança do Riseup
https://riseup.net/security

Grupo Principal de Conspiração do Toronto G20: as acusações e como elas surgiram
https://north-shore.info/archive/

Notas

  1. Muito obrigado a todos que me escreveram! Roubei muitas de suas ideias.
  2. Os modos de governança da era da Internet variam de lugar para lugar – Estados mais autoritários podem preferir filtragem e censura, enquanto Estados democráticos produzem uma espécie de “cidadania digital” – mas a vigilância em massa e a guerra cibernética estão se tornando a norma.
  3. Ironicamente, o governo dos EUA mais tarde tentou acusar Zimmerman de publicar livremente o código-fonte do PGP, argumentando que ele estava “exportando armas”. Então, ele publicou o código-fonte em livros de capa dura e enviou-os pelo mundo. O motivo é que a exportação de livros está protegida pela Constituição dos EUA.
  4. Processos judiciais contra as Brigadas Vermelhas na Itália (2003) e pornógrafos infantis nos EUA (2006) mostraram que as agências policiais federais não conseguiram entrar em dispositivos e comunicações protegidos por PGP. Em vez disso, os agentes recorreram a dispositivos de escuta, passando leis que exigiam que você entregasse senhas e, é claro, informantes.
  5. Até muito recentemente, o PGP não criptografava os metadados (quem está enviando e-mail para quem, em que servidores, a que horas), o que era um grande problema. Um advogado da NSA disse uma vez: “se você tem metadados suficientes, você realmente não precisa do conteúdo”.
  6. Quer ler algo assustador? Procure o Sensorvault da Google.
  7. Negação plausível, sigilo antecipado e destruição segura de dados são projetados em algumas ferramentas de privacidade para tentar conter essa ameaça ou pelo menos minimizar seus danos.
  8. As impressões digitais (e outros dados biométricos) não são consideradas senhas em muitas jurisdições, o que significa que as impressões digitais não estão sujeitas às mesmas proteções legais.
  9. No meu telefone, recentemente substituí o Android pelo LineageOS, que é um sistema operacional desgooglezado, direcionado para a privacidade, baseado no código Android. Ele é ótimo, mas é feito apenas para determinados dispositivos, você anula a garantia do telefone e definitivamente há uma curva de aprendizado quando se trata de configurá-lo, mantê-lo atualizado e mudar para um software de código aberto.

Entre em contato com o autor através de signalfails [em] riseup [ponto] net

Oficina sobre criptografia de email, dia 15/10

No dia 15/10, às 19h daremos uma oficina sobre criptografia com GPG, no Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFH) da UFSC, sala 330.

Veremos como funciona a internet, a criptografia assimétrica com par de chaves, criptografia de ponta a ponta, e por fim, como mandar e receber um email criptografado!

Traga seu computador!

Limitações das VPNs

O texto abaixo foi extraído da página de Ajuda do Riseup e nos parece importante pois nos lembra até onde vai esta solução técnica.

Recomendamos que se tenha sempre em mente os limites da opção tecnológica que você usa. Já escrevemos um pouco sobre o Signal. Quem sabe, mais pra frente, falamos sobre Tor, Linux, Lineage, etc.

Acima de tudo, esteja cara a cara com as pessoas.


A Riseup VPN tem limitações comuns a todas as VPNs pessoais:

  • Legalidade: Se você vive em um Estado não democrático, pode ser ilegal usar uma VPN pessoal para acessar a internet.
  • Localização: Usar uma VPN em um dispositivo móvel resguardaria a sua conexão de dados, mas a companhia telefônica ainda poderia determinar a sua localização, registrando quais torres se comunicam com o seu dispositivo.
  • Dispositivos seguros: Uma VPN ajuda a proteger as suas informações enquanto transitam pela internet, mas não enquanto estão armazenadas no seu computador ou em um servidor remoto.
  • Conexões inseguras são sempre inseguras: Embora a Riseup VPN torne anônima a sua localização e proteja você da vigilância do seu provedor, depois que seus dados forem roteados em segurança por riseup.net, eles seguirão pela internet normalmente. Portanto, ainda se deve usar conexões seguras (TLS), quando disponíveis (isto é, prefira HTTPS a HTTP, IMAPS a IMAP, etc.).
  • VPNs não são remédio para tudo: Embora deem conta de muita coisa, as VPNs não resolvem tudo. Por exemplo, não aumentam a sua segurança se o seu computador já estiver infectado por vírus ou programas espiões. Se você passar informações pessoais a um site, a VPN poderá fazer muito pouco para manter seu anonimato diante dele e das páginas parceiras. Saiba como manter o anonimato com VPNs.
  • A internet pode ficar mais lenta: A Riseup VPN roteia todo o seu tráfego por uma conexão criptografada a riseup.net antes que ele siga para a internet normal. Esse passo extra pode deixar a transferência de dados mais lenta. Para reduzir a lentidão, escolha, se possível, um servidor de VPN localizado próximo a onde você vive.
  • VPNs podem ser difíceis de configurar: Ainda que tenhamos tomado providências para facilitar ao máximo o processo, qualquer VPN complica um pouco a configuração da sua rede.