ANATEL: Vigilância sem querer querendo

Trecho do relatório Vigilância das Comunicações pelo Estado Brasileiro.

“No exercício de sua competência para expedição de normas infralegais (art. 19 da Lei nº 9.472/97), as resoluções, e no exercício de sua função de regulação das telecomunicações, a Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL) organiza a prestação de serviços e concretiza direitos de usuários, mas não sem criar significativo potencial de vigilância. A falta de precisão e clareza de suas resoluções e de transparência em sua atuação colaboram para a fragilidade da proteção de usuários de serviços de telecomunicações à vigilância ilegítima do Estado.

OBRIGAÇÕES DE PRESTADORES DE SERVIÇOS DE TELECOMUNICAÇÕES

A Resolução nº 426/05 – Regulamento do Serviço Telefônico Fixo Comutado obriga, no art. 22, que “todos os dados relativos à prestação de serviços, inclusive os de bilhetagem”, sejam guardados por prestadoras de serviço de telefonia fixa (tais como Vivo e NET) “por um prazo mínimo de 5 anos”, sem precisar quais dados são esses, por quem e a que fins poderão ser usados. Não há normas específicas de segurança sobre a forma como devem ser guardados os dados: o art. 23 apenas estabelece que é responsabilidade de provedores zelar pelo sigilo dos dados. No art. 24, determina-se que prestadores de serviços de telefonia fixa tenham à disposição recursos tecnológicos e facilidades necessárias para a suspensão de sigilo das telecomunicações, decorrente e nos limites de ordem judicial, e que elas próprias devem arcar com os custos financeiros de tais tecnologias.

A Resolução nº 477/07 – Regulamento sobre Serviço Móvel Pessoal determina, no art. 10, XXII, que prestadoras de telefonia móvel (tais como Vivo, Claro, Tim e Oi) manterão, pelo prazo mínimo de 5 anos, “à disposição da Anatel e demais interessados, documentos de natureza fiscal, os quais englobam dados da ligações efetuadas e recebidas, data, horário de duração e valor da chamada, bem como informações cadastrais dos assinantes, em conformidade com o que prescreve o art. 11 da Lei 8.218/91 […]”, o qual obriga pessoas jurídicas a manterem documentos fiscais à disposição da Receita Federal pelo prazo decadencial previsto na legislação tributária, que é de 5 anos. Os arts. 42 e 58 estabelecem, ainda, “dados pessoais mínimos” para adesão de usuário a serviço de telefonia móvel (nome, número do documento de identidade e número do registro Ministério da Fazenda). Na prática, isso torna o cadastro de uma linha móvel dependente de um CPF, por exemplo, dificultando o uso anônimo.

A lógica da obrigação de guarda de dados relativos à prestação de serviço de telefonia por 5 anos e sua justificativa para fins fiscais e fiscalizatórios da ANATEL são indicadas pelos termos do citado art. 10, XXII da Resolução nº 477/07. Ambas as normas que estabelecem obrigações de guarda de dados na telefonia fixa e móvel sustentaram por longo período, contudo, a conveniência da disposição desses dados para fins investigatórios e persecutórios do Estado. A Lei nº 12.850/13 (“Lei das Organizações Criminosas”), que obrigou empresas de telefonia a guardarem dados expressamente a estes fins, é apenas de 2013. Além disso, os termos das resoluções instituem obrigações de guarda de dados mesmo quando os tipos de serviço se referem a tarifas fixas (flat rates), quando a duração de uma chamada ou o número a que se ligou não afetam a cobrança final do usuário que será tributada. A extrapolação da vigilância da ANATEL para outros fins fica, portanto, evidenciada.

A Resolução nº 614/13 – Regulamento do Serviço de Comunicação Multimídia obriga provedores de conexão à Internet (tais como Vivo e NET) à guarda de registros de conexão e de dados cadastrais de assinantes pelo prazo mínimo de 1 ano, em seu art. 53. A definição de registros de conexão está fixada pelo art. 4º, XVII (conjunto de informações referentes à data e hora de início e término de uma conexão à Internet, sua duração e o endereço IP utilizado pelo terminal para o envio e recebimento de pacotes de dados, entre outras que permitam identificar o terminal de acesso utilizado). O prazo menor se comparado às obrigações relativas à telefonia e a clareza na definição do que deve ser guardado pode ser atribuída ao fato de a resolução ter sido elaborada no contexto de discussão da Lei nº 12.965/14 (“Marco Civil da Internet”) e da publicidade de decisões internacionais contrárias à retenção de dados, que receberam especial atenção da comunidade acadêmica e da sociedade civil.9

ACESSO DIRETO A DADOS

O acesso da ANATEL a documentos fiscais de prestadoras de serviços, os quais, como visto, contêm informações cadastrais de clientes, registros e valores de chamadas, é admissível, em regra, para fins fiscalizatórios, por meio de requisição da agência ao prestador. Reportagem do jornal Folha de São Paulo de 201110 revelou as intenções da agência de possuir acesso direto e sistemático a tais dados por meio da construção de infraestrutura que permitisse acesso online irrestrito à ANATEL, com o objetivo de modernizar sua fiscalização. À época, a agência declarou que o acesso a registros de chamadas somente ocorreria com autorização de usuário que fizesse reclamação à agência11 e que os software a serem instalados permitiriam apenas fornecimento de “informações em estado bruto” das prestadoras, não conectadas a dados cadastrais.12 O art. 38 da Resolução nº 596/12 da ANATEL instituiu as obrigações às prestadoras de serviços de telefonia de fornecer dados, permitir o acesso e disponibilizar o acesso online a aplicativos, sistemas, recursos e facilidades tecnológicos utilizados por elas “para coleta, tratamento e apresentação de dados, informações e outros aspectos”, confirmando as intenções da agência. As modulações da ANATEL acerca da necessidade de autorização do usuário para acesso e de especificação acerca dos dados cujo acesso é direto não encontraram especificações nessa resolução, contudo.”

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *